Após anos de disputa e registros de conflitos físicos entre acampados e trabalhadores a mando de seus patrões, que se dizem donos da área onde está localizada a fazenda Palotina – Novo Natal ou Ocupação Marielle Franco, como a chamam os acampados –, na região de divisa entre o Acre e o Amazonas, no município de Lábrea, o impasse caminha para um desfecho com aparente vitória dos assentados.
O Instituto Brasileiro de Colonização e Reforma Agrária (Incra) concluiu o processo de arrecadação de parte das terras da gleba e anunciou que a área ficará com o movimento de trabalhadores, conforme revelou o serviço de comunicação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão ligado à Igreja Católica.
A conclusão do processo deverá pôr fim a quase uma década de violência na região, segundo a CPT. De acordo com a organização, ao longo desses anos, os acampados tiveram suas casas incendiadas, sofreram agressões, torturas e ameaças. Em janeiro de 2025, um morador do acampamento foi encontrado morto com um tiro no queixo. O caso segue em investigação.
“É um alívio para nós, né?”, disse Paulo Sérgio Araújo, liderança do grupo de acampados, sobre a decisão do Incra. Preso há um ano, ele é acusado de organização criminosa. Araújo alega inocência e define a região como uma “terra sem lei”.
Segundo informações da superintendência do Incra no Amazonas, a criação do assentamento deve ocorrer nos próximos meses e atenderá 150 das 200 famílias que aguardam a regularização do território. Entre as atividades realizadas pelos ocupantes da área está a colheita da castanha, prática que permite a preservação ambiental, uma vez que as castanheiras – árvores típicas da Amazônia – crescem em harmonia com outras espécies.
Além da colheita, alguns ocupantes realizam roçados. A agricultora Joana, que prefere não ter sua identidade revelada, vive no acampamento há cerca de nove anos, onde planta arroz, macaxeira, hortaliças e cria galinhas.
“A gente ficava sob tortura psicológica”, conta a agricultora, referindo-se à pressão sofrida pela comunidade durante o período de conflito. Ela relata a presença de drones sobrevoando a área, além dos incêndios de casas e ameaças de despejo.
Joana acredita que a arrecadação da terra e o assentamento das famílias poderão diminuir as investidas dos fazendeiros. “A gente vai ficar mais confiante”, afirma.
Conflito agrário e investigações
Um dos fazendeiros apontados pelos moradores como mandante das ameaças é o pecuarista Sidnei Sanches Zamora, proprietário de terras no Acre e no Amazonas. Entre elas, está a fazenda Palotina, que está parcialmente sobreposta à área reivindicada pelos acampados.
Em novembro de 2024, seu filho, Sidney Sanches Zamora Filho, também pecuarista, teve prisão preventiva decretada pela 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária da Subseção Judiciária do Amazonas, no âmbito de uma investigação sobre uma organização criminosa especializada em grilagem de terras públicas.
Em contato com a imprensa, por meio de seus advogados, o pecuarista afirmou ter recebido com consternação e surpresa a ordem de prisão, “sobretudo porque sequer fui ouvido”. “Sempre fiz denúncias contra os invasores e cooperei com as autoridades ambientais e policiais”, declarou. Ele acrescentou que sua equipe jurídica conseguiu reverter a ordem de prisão preventiva, ao comprovar que ele “não cometeu nenhum crime de ordem violenta”.
Sobre a propriedade das terras, o pecuarista alega que o Incra reconheceu a titularidade da fazenda Palotina. Um dos documentos apresentados por ele, datado de 2019, é assinado por João Miguel Souza Aguiar Maia de Sousa, coronel nomeado para o cargo de ouvidor agrário nacional durante o governo de Jair Bolsonaro.
Durante sua gestão, o ouvidor ficou conhecido por enviar um memorando às superintendências regionais do Incra recomendando que os órgãos não recebessem “entidades que não possuam personalidade jurídica”, além de “invasores de terras”. Na prática, a determinação impedia que o instituto dialogasse com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
De acordo com Denis da Silva Pereira, superintendente do Incra no Amazonas, o atestado de propriedade de parte das terras mencionado por Zamora Filho foi cancelado. “Estamos respondendo pela parte que nos cabe, que é cumprir a missão do Incra de arrecadar as terras devolutas”, afirmou o superintendente, que conduziu o processo de arrecadação. “E a gleba Novo Natal é terra devoluta. A Amazônia, para ser plenamente desenvolvida, necessita ter seu território regularizado, democratizado e produzindo conforme os princípios da sustentabilidade”, concluiu.
Violência crescente na Amacro
O acampamento Marielle Franco está localizado em uma área de fronteira entre Lábrea e Boca do Acre (AM), municípios que lideram os casos de violência no campo, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT). A região está inserida na Amacro, área que abrange parte dos estados do Amazonas, Acre e Rondônia e foi definida como uma fronteira de expansão agrícola durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).
“Enquanto testemunhamos uma queda na violência na Amazônia Legal, nessa região ela cresce”, afirma Afonso Chagas, agente da CPT.
Em 2023, a Amacro concentrou 10% (179) de todos os conflitos por terra registrados no país e 26% dos assassinatos ocorridos em conflitos no campo, segundo o relatório de conflitos agrários da CPT.
Dos 31 assassinatos relacionados a conflitos rurais naquele ano no Brasil, oito ocorreram na Amacro, sendo cinco atribuídos a grileiros. Em 2021, dos 60 registros de conflitos agrários no Acre, 51 ocorreram na Amacro.
“Infelizmente, naquela área, a agressão física, a violência e os assassinatos têm sido uma especialidade dos latifundiários e grileiros de terra”, diz Chagas. Ele aponta a dificuldade de acesso à região como um fator que impulsiona a violência.
Com mais de 6 milhões de hectares, o equivalente ao tamanho do Sri Lanka, Lábrea é o décimo maior município do Brasil em extensão territorial. Embora o acampamento Marielle Franco esteja no território de Lábrea, as denúncias contra Araújo foram registradas pela polícia de Boca do Acre, cuja área urbana fica a cerca de 100 quilômetros do acampamento. Já a sede do município de Lábrea está a mais de mil quilômetros da comunidade.
“Como a região tem difícil acesso e está em uma faixa de fronteira, as jurisdições não estão suficientemente demarcadas. Isso cria um ambiente de impunidade, que dá cobertura para essas práticas violentas”, explica o agente da CPT.
Outro atrativo para grileiros na área é a abundância de terras públicas não destinadas, ou seja, aquelas que pertencem ao governo estadual ou federal, mas ainda não foram transformadas em assentamentos, Unidades de Conservação (UCs) ou territórios protegidos, como Terras Indígenas (TIs) e Territórios Quilombolas (TQ). Sem a devida demarcação, essas áreas ficam em estado de insegurança jurídica e são alvos fáceis para invasores.
“O epicentro dessa violência está justamente nas glebas públicas federais não arrecadadas e ilicitamente apropriadas por grandes grileiros”, afirma Chagas.