Ser dono de um clube de futebol traz prestígio, abre mercados e pode gerar muito dinheiro. Por esses e outros motivos, o futebol da Europa vive uma transformação no que diz respeito à propriedade das equipes. Nos últimos anos, a elite do esporte viu a chegada maciça de fundos soberanos de diferentes países, conglomerados empresariais, acionistas do mercado financeiro, bilionários “caseiros” e oligarcas estrangeiros.
O Instituto de Inteligência do Esporte do Centro Internacional de Estudos de Esporte (CIES Sports Intelligence) fez um levantamento, a pedido do ge, dos donos dos clubes que disputam a Champions League 2024/25 e as 18 primeiras divisões da Europa.
A elite do futebol europeu se concentra cada vez mais nas mãos de investidores ligados ao mercado financeiro e grandes corporações, geralmente associados a companhias e indivíduos dos Estados Unidos, e com os clubes integrados a redes multiclubes. Entenda melhor abaixo.
Investidores estrangeiros ditam as regras
Um a cada três clubes na Liga dos Campeões tem como proprietário um estrangeiro (indivíduo ou empresa). Mais precisamente, são 13 dos 36 times da competição (36%). Número recorde na história da Champions, que também se explica pela expansão do torneio.
Houve diferentes “ondas” de investimento nos clubes europeus. No começo, na virada do milênio, aquisições por parte de estrangeiros eram raridade, protagonizadas por poucos indivíduos riquíssimos. Isso se tornou mais comum nos anos 2010, com mais clareza entre 2016 e 2017, após a chegada de investidores da China e do Sudeste Asiático. A onda seguinte foi ainda maior, sobretudo com americanos, de 2018 em diante. O momento atual é do envolvimento de capital privado.
— Estamos no que podemos chamar de final do primeiro movimento de negociações de clubes na Europa, porque há ativos ainda demandando capital e investidores observando oportunidades. E de maneira mais madura, porque no princípio esses novos investidores não entendiam a dinâmica do esporte, nem como fazer dinheiro com ele. Agora começaremos um segundo movimento, mais estruturado e voltado ao retorno financeiro — comentou o economista Cesar Grafietti, consultor de Gestão e Finanças do Esporte e sócio da consultoria Convocados.
Cada país tem as suas particularidades de mercado. Vejamos primeiro o caso da Inglaterra. A Premier League, liga mais rica do mundo — faturamento acima de R$ 46,5 bilhões anuais —, é dominada por investidores estrangeiros. Eles controlam 80% dos clubes, 16 de 20.
Do tetracampeão Manchester City, que pertence ao grupo em que o maior acionista é o Sheikh Mansour bin Zayed Al Nahyan, dos Emirados Árabes, ao Ipswisch Town, do qual 50% são do fundo de investimento americano ORG. A liga inglesa apresenta atualmente sete nacionalidades diferentes de investidores de fora da Grã-Bretanha.
A Premier League movimenta muito dinheiro e gera interesse do mundo todo. Isso impactou a estrutura do futebol local de diferentes formas nos últimos anos, e a liga inglesa apertou as regras para a chegada de novos donos de clubes.
Existe o receio de que más gestões levem a uma quebra generalizada. Em 2023, clubes da Premier League e da Championship (segunda divisão) somavam dívidas de 4,7 bilhões de libras (R$ 36,4 bilhões). Everton e Nottingham Forest, por exemplo, foram punidos recentemente com perda de pontos por violações do fair play financeiro.
Esses dois clubes não estão na atual Champions. Outrora alvo de John Textor (dono da SAF do Botafogo) e da 777 Partners (em litígio com o Vasco), o Everton foi adquirido recentemente pelo Grupo Friedkin, o mesmo da Roma. Acordo que se aproxima dos 500 milhões de libras (R$ 3,9 bilhões na cotação atual). O Nottingham Forest pertence ao grego Evangelos Marinakis, que negocia a compra do futebol do Vasco.
Em resumo, as regras de rentabilidade e sustentabilidade da Premier League permitem aos clubes acumularem perdas de no máximo 105 milhões de libras (R$ 782,9 milhões) ao final de três temporadas.
— A dedução de pontos evidencia quão seriamente a Premier League pune violações às regras financeiras, em sua tentativa de promover sustentabilidade financeira aos clubes. Dadas as restrições impostas e o fato de que os novos proprietários não têm mais poder irrestrito para gastar seu dinheiro melhorando o elenco, podemos ver uma redução na propriedade de “ativos de troféus” em toda a Premier League e mais compradores comerciais entrando no campo — explicou o escritório Norton Rose Fulbright, em relatório de meados do ano passado.
Percentual de donos estrangeiros na elite da Europa
Liga | País | Clubes com donos estrangeiros | % do total da liga |
Premier League | Inglaterra | 16 | 80% |
Jupiler Pro League | Bélgica | 11 | 68,8% |
Ligue 1 | França | 11 | 61,1% |
Serie A | Itália | 11 | 55% |
Liga Portugal | Portugal | 7 | 38,9% |
La Liga | Espanha | 6 | 30% |
Bundesliga | Alemanha | 1 | 5,6% |
Eredivisie | Holanda | 1 | 5,6% |
Consolidação das redes multiclubes
O Manchester City pertence ao City Football Group (CFG). Que também é dono do Girona. E o CFG tem laços com a Yankee Global Enterprises, acionista minoritária do Milan. Que é de propriedade da RedBird Capital Partners desde 2022.
Dos 36 clubes da atual Champions League, 20 estão envolvidos em redes multiclubes, sendo que 14 deles estão diretamente ou indiretamente ligados a um concorrente na competição.
— Propriedades multiclubes representam a mais notável onda em governança de clubes no futebol nos anos recentes, é um fenômeno estabelecido. Aquisições do tipo representam parte significativa do total de compras de clubes na Europa. Porém, depois de anos de contínuo crescimento, 2024 registrou os primeiros sinais de uma desaceleração — disse Fernando Roitman, um dos fundadores do CIES Sports Intelligence.
Percentual de donos estrangeiros na elite da Europa
Liga | País | Clubes com donos estrangeiros | % do total da liga |
Premier League | Inglaterra | 16 | 80% |
Jupiler Pro League | Bélgica | 11 | 68,8% |
Ligue 1 | França | 11 | 61,1% |
Serie A | Itália | 11 | 55% |
Liga Portugal | Portugal | 7 | 38,9% |
La Liga | Espanha | 6 | 30% |
Bundesliga | Alemanha | 1 | 5,6% |
Eredivisie | Holanda | 1 | 5,6% |
Consolidação das redes multiclubes
O Manchester City pertence ao City Football Group (CFG). Que também é dono do Girona. E o CFG tem laços com a Yankee Global Enterprises, acionista minoritária do Milan. Que é de propriedade da RedBird Capital Partners desde 2022.
Dos 36 clubes da atual Champions League, 20 estão envolvidos em redes multiclubes, sendo que 14 deles estão diretamente ou indiretamente ligados a um concorrente na competição.
— Propriedades multiclubes representam a mais notável onda em governança de clubes no futebol nos anos recentes, é um fenômeno estabelecido. Aquisições do tipo representam parte significativa do total de compras de clubes na Europa. Porém, depois de anos de contínuo crescimento, 2024 registrou os primeiros sinais de uma desaceleração — disse Fernando Roitman, um dos fundadores do CIES Sports Intelligence.
Essa redução no ritmo de compras tem a ver com a estagnação dos valores de direitos de transmissão em vários países, a valorização dos próprios clubes e o cenário do mercado financeiro global.
O aumento das redes multiclubes gera vários desafios, como a concentração de poder. Há também: a possível ameaça à integridade das competições — clubes do mesmo grupo se enfrentando —; a proliferação de clubes “alimentadores”, que só servem para abastecer outros da mesma rede; efeitos negativos no mercado de transferências e na relação de emprego entre clubes e atletas.
Para além do Grupo City e da Eagle Football Holdings, a Europa tem o caso de outra rede com clube no Brasil: a empresa Red Bull, cujos times de Salzburg (Áustria) e Leipzig (Alemanha) disputam a Champions.
O RB Leipzig, aliás, segue teoricamente a regra “50+1” da Alemanha, em que as associações têm pelo menos 50% das ações dos clubes. Porém, a Red Bull substituiu sócios do antigo SSV Markanstradt por funcionários da empresa, e novos sócios não têm direito a voto. Logo, a companhia em si tem 49% das ações do Leipzig, e os outros 51% são de funcionários.
O Bayer Leverkusen é da companhia farmacêutica Bayer, e o Wolfsburg, da montadora de automóveis Volkswagen. Maior clubes do país, o Bayern de Munique é 75% dos sócios, o restante dividido entre as patrocinadoras Audi, Adidas e Allianz.
Invasão de investidores americanos
Pelo menos 91 clubes da Europa têm como acionistas majoritários investidores dos EUA. Quase todas essas aquisições aconteceram de 2016 em diante, sendo mais da metade a partir de 2022. Só que 2024 deve encerrar o período de crescimento disso, levando em consideração as compras concluídas até agora, principalmente nas primeiras divisões.
Não há um só tipo de investidor norte-americano. Os individuais podem canalizar suas aplicações por meio de negócios de família, como Frank McCourt no Olympique de Marselha, e ter paixão pessoal pelo futebol ou ver uma oportunidade de portfólio. Os investidores institucionais adotam abordagem financeira mais estruturada. Vide a Arctos Partners, no Paris Saint-Germain. E há a categoria dos grupos de esporte e entretenimento, como o Fenway Sports Group, proprietário do Liverpool.
No Campeonato Italiano, oito clubes são de propriedade de investidores da América do Norte. Sete de proprietários dos EUA, e um do Canadá. Eles têm direcionado dinheiro para esse mercado porque o custo de aquisição dos clubes é relativamente menor, e há margem substancial para crescimento. A Oaktree Capital Management é dona da Inter de Milão, atual campeã nacional.
Segundo levantamento da Football Benchmark, havia 24 clubes com donos dos Estados Unidos nas cinco principais ligas da Europa em outubro do ano passado.
— O fluxo de investimento estrangeiro, não somente mas especialmente da América do Norte, está remodelando o futebol europeu e acelerando seu crescimento global. Experientes investidores no esporte entendem que sucesso de longo prazo no futebol europeu requer equilibrar performance esportiva e financeira. Ao pressionar pelo desenvolvimento de um ecossistema mais sustentável financeiramente, o foco geralmente está na criação de valor de longo prazo, em vez da maximização do lucro de curto prazo — disse Pedro Iriondo, diretor da Football Benchmark.
Investidores americanos enxergam o mercado de clubes do futebol europeu como algo próximo das franquias das ligas profissionais dos EUA, em que o esporte é explorado como espetáculo comercial global. Só que por preços bem mais modestos: se o Dallas Cowboys, da NFL, está avaliado em 10 bilhões de dólares (R$ 61 bilhões), o Milan foi comprado em 2022 foi 1,2 bilhão de euros (hoje R$ 7,2 bilhões).
Real Madrid e Barcelona: de fato exceções?
Os dois gigantes da Espanha funcionam como a maioria dos clubes de futebol brasileiros: são propriedade dos sócios. Não são sociedades anônimas, como na Itália, ou as atuais SAFs do Brasil. Eles foram autorizados, na década de 1990, a manterem o seu modelo.
Mas não é qualquer associado que pode virar presidente de Real ou Barça. No primeiro caso, entre os requisitos estão ser sócio do clube há pelo menos 20 anos ininterruptos e fornecer garantia bancária de 15% do orçamento do Real Madrid, apoiada por bens pessoais.
— A própria lei impôs alguns requisitos para responsabilização dos dirigentes. Isso favoreceu alguns grupos políticos mais poderosos dentro do quadro de sócios desses clubes. É uma das razões pelas quais o Real Madrid não tem “bate-chapa” há algumas eleições, porque Florentino Pérez, para além de ser muito vencedor, consegue usar esse tipo de barreira ao seu favor — disse o jornalista Irlan Simões, autor do livro “Clube Empresa: abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol”, comentarista do “Redação sportv” e colunista no ge.
O Real Madrid teve receitas de mais de um bilhão de euros (R$ 6,2 bilhões) em 2023/24.
Existem grupos dentro da política de Real Madrid e Barcelona que levantam a adoção de um modelo diferenciado de sociedade anônima, com os argumentos de competir financeiramente com os clubes ingleses e de conseguir mais dinheiro. Só que há pouco apoio para eventual perda de controle da parte dos associados.
O Barcelona, apesar da excelente temporada em 2024/25, enfrenta muitas dificuldades financeiras. Mal conseguiu registrar Dani Olmo para jogar o resto da LaLiga. O clube atravessa uma crise nesse aspecto desde o início da pandemia de Covid-19 e ainda não se recuperou.
Os principais clubes do futebol mundial, por terem mais dinheiro e concentrarem os melhores jogadores, estão na Europa. Investidores entram nesse mercado visando retorno com exposição das marcas de suas empresas em mais mercados, desenvolvimento imobiliário com estádios e centros de treinamento, além da venda de outros ativos.
E especialistas alertam que compras e vendas de clubes, em especial no futebol da Europa, estão se tornando cada vez mais dinâmicas e complexas, o que exige monitoramento por parte das autoridades. Se isso não acontecer, a situação pode ficar complicada demais para regulamentar. Até mesmo para identificar a estrutura de propriedade desses clubes, os indivíduos e empresas envolvidas.
Segundo o Artigo 5 no regulamento da Uefa para a Champions League, que trata da integridade da competição e propriedades multiclubes, as equipes participantes não podem “diretamente ou indiretamente” ser membro de outro clube que disputa o torneio, ou estar envolvido em sua administração ou performance esportiva.