A sinceridade objetiva de sempre, mas acompanhada de sorrisos e uma pitada de nostalgia ao falar do Flamengo. Jorge Jesus está de bem com a vida na Arábia Saudita.
Colecionando títulos e recordes no comando do Al Hilal, o treinador projeta novos feitos para o futuro, como o duelo com o Real Madrid no Mundial de Clubes. A parte vermelha e preta do coração, por sua vez, segue lá, intacta, e repleta de histórias embaladas pela saudade que não esconde dos tempos de Rio de Janeiro.
No dia seguinte à retumbante goleada por 9 a 0 sobre o Al Fateh, pela Liga Saudita, o “Mister” recebeu a reportagem do ge no condomínio onde mora, em Riad, para quase uma hora de bate-papo em que detalhou a experiência no Al Hilal, lembrou o passado no Flamengo e comentou o futuro. Conselheiro de Filipe Luís em longas conversas madrugada adentro, Jorge Jesus segue acompanhando de perto o clube onde fez história em 2019 e 2020:
“Nós, no português, temos essa palavra saudade, e eu tenho saudade do tempo em que estive no Flamengo”
– Não só do clube em si, mas também da cidade. Apesar de estar bem em Riad, que é uma cidade fabulosa, o Flamengo foi um clube, a equipe em si, os jogadores em si, foram os que me acolheram e batizaram como se fosse um treinador diferenciado para eles. Acreditaram muito em mim e se preocuparam muito comigo até no que eu fazia fora do Flamengo. Não sei se mais alguma vez terei um grupo como esse.
Do impacto que sua passagem pelo país gerou, abrindo portas para nomes como Artur Jorge e Abel Ferreira, até da projeção de um Brasil favorito na Copa do Mundo de 2026, o treinador não se privou de tema algum e deu declarações fortes ao jeito “Mister” de ser. Confira a íntegra da entrevista com Jorge Jesus:
Confira a íntegra da entrevista:
Como tem sido essa segunda experiência na Arábia? Não é novidade na sua carreira, mas agora com novos recordes, títulos e um país que tenta se abrir ao mundo…
– A Arábia Saudita é um país do qual a Europa tem uma ideia diferente da realidade. É um país em crescimento, que dentro de poucos anos vai ser, já é, um dos mais importantes do mundo, com mais qualidade de vida. Com sua cultura própria, é óbvio, mas que não impede nada se você souber respeitar as regras. Neste país, há regras. Na maioria dos países da Europa, não há regras, aqui há regras. Todos sabemos os nossos direitos e deveres. Quando isso acontece, fica fácil viver. É um país super seguro para criar seus filhos, sua família, como já não há na Europa.
Percebe-se muitas mudanças de 2018, quando teve a primeira passagem pelo Hilal, para agora?
– Tem evoluído muito. Há uma aposta muito séria. O futebol talvez seja o maior veículo publicitário do mundo, e o governo saudita percebeu isso. Investiu no futebol, na estrutura, nos melhores jogadores do mundo, e cada vez mais os grandes jogadores da Europa vão querer vir para Arábia Saudita. Sim, pelo aspecto financeiro, mas também vão para a Inglaterra por ser um dos países onde se ganha mais, para a Espanha também… O futebol saudita tem essa vantagem de jogar bem e está criando estádios com qualidade para ter um bom futebol, para os torcedores e está no caminho certo.
No Brasil, há questionamentos a respeito da competitividade e da intensidade do jogo. A seleção brasileira, por exemplo, não convoca jogadores de linha que estão na Arábia Saudita. O que você pode falar sobre o nível do futebol praticado no país?
– Há jogos às vezes em que não se consegue ter intensidade durante os 90 e poucos minutos por conta dos meses de calor, quando faz 45, 48 graus. Não é fácil jogar com essas temperaturas e acaba partindo o jogo e quebrando a intensidade. Mas isso só nos meses mais quentes. Vamos perceber e falar de futebol: quem dá intensidade ao jogo? Os jogadores. E a qualidade deles é que dá intensidade. Se você tiver jogadores com pouca qualidade, seu futebol será mais lento. Se tiver com grande qualidade e oferecendo condições do campo, o que é o caso dos gramados da Arábia, o futebol terá intensidade. Isso é um chavão para quem fala e não percebe o que diz. Vamos comparar, por exemplo, com o futebol da Inglaterra. É mais intenso, mas é mais frio. Quando se tem temperaturas mais baixas, naturalmente você corre mais e não cansa tanto, o desgaste não é tão rápido. Por esses pormenores do tempo e não da qualidade do jogo… Falei do Inglês que para mim não é referência nenhuma, nunca foi e nunca será. Mas o futebol saudita em 2034 tem a Copa do Mundo e não vai parar de crescer.
O desenvolvimento da liga saudita passa pela chegada de grandes estrelas, mas o melhor time e mais vencedor é o Al Hilal, que não tem à disposição sua grande estrela e se notabiliza pelo jogo coletivo. O quanto isso dá mais orgulho para um treinador?
– Eu tenho uma ideia de time e de jogo que passa sempre pelo coletivo, independentemente de ter as referências individuais como no Al Hilal e também era no Flamengo. Com a nossa chegada, o Hilal ganhou tudo o que tinha para ganhar no país, parecido com o que aconteceu no Flamengo. Já vencemos quatro títulos e temos só duas derrotas. No Flamengo, tivemos cinco títulos e quatro derrotas. Comparo um pouco com o Flamengo. O Al Hilal é um clube que na Arábia Saudita é como se fosse o Flamengo em termos de torcedores, troféus, dimensão para o país e para fora. Neste momento, o Hilal é a melhor equipe do Oriente Médio, não há dúvidas, mas para confirmar isso temos que carimbar a Champions da Ásia.
O Al Hilal é o único representante saudita no Mundial, que é uma competição que gera muita expectativa. Em que prateleira você colocaria o clube? Juntamente com os brasileiros e atrás dos principais europeus?
– O Al Hilal vai competir e entrar no Campeonato do Mundo para ser uma equipe que pode chegar longe. Não tenho dúvida nenhuma do que estou dizendo se mantivermos essa trajetória. Vai ter uma janela nova na qual podem entrar mais jogadores, mas o Al Hilal será a referência do futebol árabe e, quando os árabes entram, eles não querem perder.
A estreia será contra o Real Madrid. É algo que preocupa mais ou que motiva mais o Al Hilal para se classificar às oitavas?
– Calhou de ser contra uma das equipes mais representativas do mundo e isso fará com que o Al Hilal esteja na boca do mundo. Tenho certeza do que vou dizer: o Al Hilal será uma super equipe no Mundial.
Você acabou de completar 70 anos e foi eleito o melhor técnico do Oriente Médio depois de ser campeão no Brasil, na Turquia, em Portugal… Como manter a vontade de trabalhar e o vigor com essa idade?
– O futebol para mim é uma paixão que muitas vezes ponho à frente da minha família. Todos os dias, eu acordo com uma vontade enorme de trabalhar. Quando eu não treino, dou folga, são os piores dias. Só me falta ser o melhor treinador na Europa, que ainda não fui, mas já fui em vários continente. Isso se dá também por ter escolhido bons clubes, como o Flamengo na América Latina e ganhamos quase tudo. Aqui na Arábia, a mesma coisa, e eu todos os dias acordo com saúde e muito motivado para trabalhar com meus jogadores e ganhar cada vez mais títulos. No fundo, são os títulos que dão essa valorização e nos diferenciam dos outros.
Há relatos de jogadores que viveram aquele momento de uma relação muito próxima entre vocês, em que o senhor até chorou de emoção pela forma como aquele grupo se dedicava e trabalhava…
– A gente tinha uma relação muito forte. O jogador brasileiro, pelo menos comigo, foi uma coisa incrível. A gente acabava o treino e parece que estou aqui vendo todos sentados, discutindo as jogadas que fizemos, o porquê de terem recebido uma dura, depois me chamavam para conversar e entender… Conversávamos e isso era uma riqueza de grupo e de crescimento, como nunca tive em nenhum time. Mas o clima era para isso, acabava o treino e dava para ficar ali sentado. Nos outros países em que trabalhei, era impossível. Portanto, uma coisa proporcionava outra. Por isso, tenho saudades. Fui bem tratado por todos, até mesmo torcedores que não são do Flamengo me deram carinho nas ruas, nunca me xingaram, sempre gostaram de mim… Tudo isso conta.
O senhor mantém uma relação com esses jogadores?
– Sim, mantenho relação com muitos jogadores. Mais hoje com o Filipe Luís, por ser treinador, mas com muitos deles, como os que estão no Flamengo… Bruno Henrique, Gerson, Arrascaeta, o Everton que saiu, falava muito com o Gabigol, com todos aqueles que ainda estavam no Flamengo desde o meu tempo e continuo a me comunicar.
Eu sei que o Filipe fala muito com o senhor, mesmo com a questão do fuso, pede conselhos. Você se sente parte dessa história?
– O Filipe sempre teve uma paixão muito grande pelo futebol e quis seguir essa carreira. Já como jogador, ele fazia muitas perguntas sobre como seria quando fosse treinador, que projeto poderia elaborar. Ele já tem paixão, que é fundamental, e acredito que ele vá ser um bom treinador independentemente de os primeiros anos serem difíceis para todos. Foi assim para mim, no começo temos muito o que aprender. Acredito que ele vai ter uma carreira brilhante e bonita, porque sabe o que quer.
Quando houve o convite para assumir o time principal, ele pediu conselhos?
– Sim, falamos várias vezes nesta hipótese. Soube que ele foi convidado para ser assistente de alguns treinadores, sabia que o momento poderia chegar e agora ele vai ter que partir a cabeça sozinho, passar muitas horas sem dormir, mas isso faz parte da carreira do treinador.
O Michael falou que vê muitas semelhanças entre você e o Filipe, você concorda com isso?
– Há essa tendência de reproduzir, imitar os treinadores nos quais a gente acredita. Se ele acredita nas minhas ideias, é natural que queira que as equipes dele tenham os mesmos comportamentos e princípios, independentemente da minha cabeça ser uma e a dele outra. O futebol não é uma ciência exata. Nem tudo é fácil para dizer que conhece os métodos de quem vence e também vencer.
Como acompanhou o fim de ciclo do Gabriel pelo Flamengo?
– O Gabigol achou que era o momento de sair e veio de um ano complicado para ele. Os torcedores adoram o Gabigol, depois do Zico é um ídolo criado, mas o último ano dele houve muita coisa que não sei se os torcedores do Flamengo o perdoariam. Se calhar, sair não foi ruim e pode até um dia voltar. Acredito muito no futebol dele e acredito que vá fazer grandes coisas pelo Cruzeiro.
Se calhar, ele pode um dia voltar, e você teve oportunidades de voltar nesses últimos anos que não deram certo. Há explicação para essas negociações não terem acertado a volta?
– No meu último ano de Benfica, foi por uma semana que não fui treinador do Flamengo. Marcos Braz esteve em Portugal para me levar e eu ainda era treinador do Benfica. Eu disse que naquele momento não era fácil sair, mas que as coisas não estavam tão boas e que, se pudesse esperar mais um pouco, isso ia acontecer. Mas o fato é que saí do Benfica depois de uma semana do acerto com o Paulo Sousa. O timing às vezes não dá, às vezes não é na hora e não se conjugam os interesses.
Na sua projeção de carreira, um dia quer voltar ao Flamengo?
– Um dia eu quero voltar. Agora, não sei, né? Não sei quando. Neste momento, estou muito bem aqui no Al Hilal, tenho um presidente que me adora, tenho uma torcida que não é igual à do Flamengo, são menos, mas que também gosta muito de mim e no futebol não se pode fazer projetos a longo prazo. É o dia a dia, assim que eu penso. Neste momento, estou bem no Hilal e daqui a um mês posso nem estar aqui. Tudo muda rapidamente. Não tenho um projeto de carreira a longo prazo para minha vida. O importante neste momento é onde eu estou, e estou bem e seguro.
Se o senhor pudesse programar, viver tudo o que viveu no Flamengo novamente é um desejo?
– Resta saber também se a parte da lá me quer, né?! Hoje os dirigentes já não são os mesmos, apesar de o BAP ter sido meu diretor e eu conhecer muito bem. Falamos muito na altura da eleição, mas os momentos de decisão são determinantes para que as coisas possam dar certo ou não.
A passagem de 2019 é algo tão “santificado” pelo torcedor que fica aquela pergunta se o senhor voltaria para colocar em risco se não conseguisse repetir…
– Eu não tenho medo nenhum de voltar para o Flamengo no aspecto esportivo. Que não vai ser igual, não vai. A maior parte dos jogadores já não está lá. O Flamengo hoje tem que voltar a fazer um time para se enquadrar nas ambições do clube. Ao longo dos anos, foram perdendo grandes referências do elenco do meu tempo e para ter essa dimensão não se faz de um dia para o outro, se faz com o tempo, com organização, boa estrutura, qualificar cada vez mais o plantel, e depois poder avançar com o Filipe ou outro treinador, mas neste momento ainda não vai conseguir.
Uma pergunta que foi feita muitas vezes no ano passado: quem foi melhor, o Flamengo de 2019 ou o Botafogo de 2024?
– Isso nem tem conversa, não é comparação possível. Não é por eu ter sido o treinador do Flamengo, mas estão comparando o Flamengo do meu tempo, que ganhou tudo o que havia para ganhar. O Botafogo não ganhou, o Botafogo ganhou a Libertadores e o Brasileirão. No meu tempo, ganhamos o Estadual, o Brasileirão, a Libertadores, a Supercopa, a Recopa… Sei lá, tudo o que tinha para ganhar. O Botafogo teve méritos, eu acompanhei muito, fiquei feliz pelo Artur Jorge ter realizado esse feito, mas não há comparação possível. A qualidade de jogo que o meu time tinha e a qualidade de jogo que o Botafogo tinha não dá para comparar.
Quanto a sua passagem foi determinante para mudar os rumos do futebol brasileiro? Passou a ter mais times com marcação alta, intensidade e outros fatores… Além dos portugueses terem o mercado aberto.
– Sim, a minha passagem obrigou o futebol brasileiro e o próprio treinador a olhar o jogo de outra maneira. Quando chegamos, o futebol era muito de posição, de pouca pressão. Hoje, não, eles já sabem o que é fazer pressão alta. Esse foi um dos componentes do jogo que fizeram mudar o futebol brasileiro, porque a qualidade que o jogador tem continua, o talento continua todo lá, mas no futebol só o talento não ganha jogos hoje em dia. O talento com a qualidade do trabalho é o que ganha títulos e jogos. Hoje, as grandes equipes do Brasil estão a ir por essa mudança, como na Europa. E, sim, sinto que deixamos um legado para que os outros treinadores portugueses, como Abel e Artur Jorge, tivessem a continuidade dessa ideia de jogo. Isso fez com que três treinadores portugueses no espaço de cinco anos ganhassem. Eu me sinto como o Pedro Álvares Cabral do futebol português no Brasil, onde foi confirmado e justificado. O treinador português é o melhor treinador do mundo. Não estou dizendo que são todos iguais. O Messi não são todos Messis e nem Neymar, nem Ronaldinho… Mas dentro do que três, quatro treinadores portugueses, são os melhores do mundo.
Como você vê o nível do futebol brasileiro e a situação da seleção brasileira atualmente?
– São duas coisas, o futebol do Brasileirão e a Seleção. O futebol brasileiro, que devia fazer uma publicidade, um marketing, não conseguiu fazer. O futebol brasileiro é dos mais ricos do mundo, uma coisa impressionante. Qualidade, cenários com torcedores como em poucos países do mundo, estádios já com muita qualidade, e o produto não é bem vendido. Deveria ser de outra maneira. Há campeonatos na Europa que não têm essa qualidade e conseguem vender. A Seleção é outra questão. São jogadores que praticamente trabalham na Europa e eu acho que a Seleção tem tudo para em 2026 voltar a ser campeã do mundo. Quem faz as grandes seleções são os jogadores, e o Brasil tem grandes jogadores. Com esta recuperação que o Neymar certamente vai ter, vai ajudar esta Seleção na Copa do Mundo de 2026 para tentar voltar a ser campeã. Eu acredito perfeitamente.