O som dos carros e o calor intenso de Rio Branco contrastam com a tranquilidade de um pequeno grupo que se reúne no Centro Pop – Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua, situado no coração da capital acreana. Ali, entre um café e uma conversa, o invisível toma forma, ganha voz e rosto. A população em situação de rua no estado do Acre, que já alcança 823 pessoas distribuídas por sete municípios, é tema de discussões urgentes e revela a necessidade de ações eficazes para enfrentar esse desafio social.
De acordo com a Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH), a maior concentração está na capital: 657 pessoas, sendo 549 homens e 108 mulheres. Em Cruzeiro do Sul, segunda maior cidade do estado, o cenário também é preocupante, com 118 indivíduos vivendo nas ruas. Nos municípios menores, os números variam, mas a realidade é igualmente desafiadora. Tarauacá registra 21 pessoas em situação de rua; Sena Madureira, 15; Feijó e Epitaciolândia, 6 cada um; e Assis Brasil, 2. No total, 670 homens e 153 mulheres enfrentam o dia a dia sem um teto para chamar de seu.
Em um contexto nacional de agravamento do problema — com um aumento de 25% no número de pessoas em situação de rua em 2024 —, o Acre também busca soluções. A SEASDH relata avanços: 88 certidões de nascimento e documentos de identidade foram emitidas gratuitamente no ano passado, permitindo que muitos retomassem o acesso a direitos fundamentais. Além disso, 66 pessoas foram incluídas no programa de auxílio federal, e 28 conseguiram deixar as ruas, beneficiadas pelo aluguel social e pelo suporte público.
A entidade também salienta que mais de R$ 2 milhões foram destinados ao cofinanciamento de ações de assistência social nos municípios, fortalecendo iniciativas que garantem suporte e inclusão para populações vulneráveis em todo o estado.
Histórias que revelam a realidade das ruas e a luta contra o vício
Marcelo Barbosa da Silva, de 40 anos, é uma dessas pessoas que vivem à margem da sociedade. Dependente de crack, ele compartilha com lucidez os eventos que o levaram às ruas.
“Mano, isso aconteceu porque, com o problema de família, minha avó morreu e minha prima vendeu a casa, né? Que era meu direito. Por causa disso, ela me envenenou contra o resto da minha família. Eu não podia mais ir pra casa e fiquei na rua até hoje”, conta Marcelo, que busca diariamente alimentação e apoio no Centro Pop de Rio Branco. Apesar das adversidades, ele não perde a esperança. “Eu sonho com uma mão amiga que me dê um conselho para sair dessa vida, um emprego, um curso.”
As palavras de Marcelo ecoam a urgência de políticas públicas mais robustas e eficazes. Ele elogia as refeições oferecidas pela prefeitura, mas lamenta que, muitas vezes, o vício leve outros moradores de rua a venderem os alimentos, e deixa um alerta sobre os efeitos devastadores do crack. “Leva pro chão, perde tudo. Eu perdi o amor da família. Precisaria de uma nova oportunidade, mas pra isso tem que se tratar”, conclui, pedindo por maior assistência para superar o ciclo de dependência química.
Entre dores e esperança: a luta de Dona Maria José em busca de um recomeço
Outra personagem dessas histórias é Dona Maria José. Moradora de rua há mais de oito anos, ela carrega consigo uma trajetória marcada por dor e superação. Fugiu de casa para escapar da violência doméstica praticada pelo marido e, desde então, perdeu o lar. “Ele me batia, e eu saí de casa. Mas hoje eu tenho medo da rua, ela é azeda”, desabafa.
Hoje, Dona Maria sobrevive de pequenos serviços, como recolher lixo, em troca de alguns trocados. Há três meses, venceu a luta contra o vício em drogas e agradece ao Centro Pop pelo suporte essencial. “A alimentação é precisa”, diz ela, com gratidão evidente.
Com lágrimas nos olhos, Maria José revelou seu sonho de ter uma casa própria e relembrou episódios traumáticos vividos nas ruas, como abusos sexuais. “De noite, a gente não dorme porque tem medo de ser morta. Tenho que dormir com um olho aberto e outro fechado, principalmente por ser mulher. Uma vez, um cara chegou com uma faca enquanto eu dormia. Eu pedi pelo amor de Deus, mas tive que ceder, senão ele me matava”, relembra emocionada.
Os desafios do Centro Pop
O integrante da equipe do Centro Pop de Rio Branco, Gabriel Ferreira, fala sobre a complexidade de lidar com um público tão vulnerável. De acordo com ele, atualmente, cerca de 357 pessoas dependem do serviço, muitas delas envolvidas com facções criminosas ou presas ao ciclo do uso abusivo de drogas e álcool.
“Nosso público está muito além da hiper vulnerabilidade. Lidamos com indivíduos que vivem em facções, o que dificulta nosso trabalho junto àqueles que realmente precisam de ajuda e têm a humildade de aceitar nossos serviços”, explica Gabriel.
O Centro oferece, diariamente, 140 marmitas no almoço e 125 kits de café da manhã, mas o assistencialismo enfrenta críticas. “Alguns pegam e vendem os alimentos para comprar drogas ou álcool. Isso desvirtua nosso objetivo”, lamenta Gabriel. Ele destaca a necessidade de mudar a percepção dos usuários sobre a unidade. “Precisamos mostrar que o Centro Pop não está aqui apenas para servi-los, mas para acolhê-los e oferecer um caminho de reintegração na sociedade”.
Gabriel enfatizou que parcerias estão sendo feitas com a Associação Comercial, Industrial, de Serviço e Agrícola do Acre (Acisa) e outras instituições para promover oportunidades de trabalho. “Queremos acabar com o assistencialismo e praticar saúde e assistência social de forma mais efetiva. Precisamos dar a essas pessoas ferramentas para reconstruírem suas vidas”, ressalta.
A visão do MP-AC: desafios estruturais e a prioridade à moradia
Para o promotor de direitos humanos do Ministério Público do Acre (MP-AC), Thales Ferreira, a situação de rua é um problema multifacetado, presente em praticamente todas as grandes cidades do mundo. Ele destacou que esse aspecto tem se intensificado, especialmente no período pós-pandemia, marcado pelo desmonte de políticas públicas e pela redução do acesso da população a direitos básicos, como emprego, saúde, educação e moradia.
Segundo Ferreira, o principal fator que leva uma pessoa a viver nas ruas não é o uso de drogas, como muitas vezes se acredita, mas sim o rompimento familiar. “É uma questão muito complexa, pois envolve moradia, trabalho, emprego e renda. Existe uma percepção equivocada de que essas pessoas estão nas ruas porque usam drogas, são malandras ou criminosas. Isso não é verdade. Pesquisas recentes indicam que o uso de drogas é apenas o quarto fator que leva alguém a essa situação. O principal é o rompimento familiar, seguido pela incapacidade de pagar uma moradia ou aluguel e pela quebra de vínculos com filhos, esposas, entre outros”, explica.
Para o promotor, a situação reflete as dificuldades enfrentadas pelos órgãos de assistência social na promoção do restabelecimento desses vínculos familiares. “Instituições como o CREAS e o CRAS têm uma certa limitação em fortalecer esses laços e criar uma rede de proteção eficaz. O Ministério Público entende que a situação de rua é um problema que preocupa todas as autoridades do país”, acrescenta.
Ferreira também informou que o tema foi abordado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, julgada pelo Supremo Tribunal Federal. Na ocasião, o ministro Alexandre de Moraes concedeu uma imposição liminar de diversas obrigações aos estados, municípios e à União. O Acre foi o primeiro estado a assumir um compromisso formal com essas políticas, seguido pelo município de Rio Branco, que está atualmente em fase de implementação. Entre as medidas previstas estão a definição de metas, a elaboração de um plano de ação e a criação de um comitê para monitorar as ações.
“O Ministério Público acompanhará de perto a execução desses planos e o progresso das iniciativas. A ADPF 976 prevê ações fundamentais, e devemos considerar que a política de ‘moradia primeiro’ é essencial para que essas pessoas tenham um lar. Além disso, é necessário fortalecer os CAPS, as redes de atendimento, o CREAS, o CRAS e toda a estrutura de assistência social. Nosso objetivo é garantir que as pessoas em situação de rua possam superar essa condição”, destaca.
O promotor finalizou ao anunciar que o MP-AC pretende adotar uma nova abordagem em 2025, com foco em questões estruturais voltadas à criação de políticas públicas permanentes. Essas políticas foram projetadas para permanecer, independentemente de mudanças na gestão pública, e imunes a interferências políticas ou pessoais. “Nosso objetivo é garantir a implementação efetiva dos direitos fundamentais e humanos, sem retrocessos sociais”.
Superando a invisibilidade: um caminho coletivo
A vice-governadora e secretária de Assistência Social, Mailza Assis (PP), afirmou, por meio de sua assessoria, que a Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH) tem trabalhado intensamente para oferecer apoio tanto aos imigrantes que chegam ao Acre quanto às pessoas em situação de rua.
Assis ressaltou que o estado atua como parceiro das prefeituras, responsáveis pela gestão de casas de acolhimento, como o Centro Pop, que oferece alimentação (café, almoço e jantar) e dormitório. De acordo com a vice-governadora, a prefeitura de Rio Branco tem realizado um trabalho contínuo, servindo cerca de 200 refeições diárias no Centro Pop para essa população. Além disso, o município oferece apoio social e psicossocial para ajudar na reintegração dessas pessoas à sociedade.
“A SEASDH atua no suporte dessas ações e também realiza um trabalho de apoio em programas de inclusão social. Neste ano, conseguimos avançar em vários aspectos, declarou Mailza. Ela também destacou que o Acre foi o primeiro estado a formalizar a adesão ao “Plano Ruas Visíveis”, uma política do Governo Federal voltada para garantir a dignidade das pessoas em situação de rua. O plano abrange ações em sete eixos principais, como Assistência Social, Saúde, Cidadania, Habitação, Trabalho e Renda.
“Estamos empenhados em executar essas ações para garantir que as pessoas em situação de rua tenham acesso a direitos básicos e oportunidades reais de reintegração à sociedade. Nosso governo, que tem como prioridade o cuidado com as pessoas, continuará buscando parcerias e trazendo cada vez mais o olhar atento do Governo Federal”, afirmou.
O novo secretário de Assistência Social de Rio Branco, João Marcos Luz, também se comprometeu a dar prioridade ao tema. Segundo ele, é necessário envolver gestores do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, além de implementar políticas públicas que incluam oportunidades de trabalho e acesso à saúde para a população de rua.
“Vamos buscar envolver o Ministério Público, o Judiciário, o Estado e a iniciativa privada. Temos que dar oportunidade de trabalho a alguns e atendimento de saúde a outros. Nós vamos atrás dessas pessoas, não vamos esperar que elas nos procurem”, declarou Luz.
- Por Saimo Martins, do AC24horras.