Em discurso nesta terça-feira (21) na abertura da 76ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, o presidente Jair Bolsonaro usou dados distorcidos para exaltar a política ambiental e o desempenho da economia brasileira durante o seu governo, e defendeu a adoção do chamado tratamento precoce contra a Covid-19, cuja ineficácia já foi cientificamente comprovada.
No discurso, Bolsonaro também:
Bolsonaro, que foi o primeiro a discursar, disse não entender por que “muitos países, juntamente com a grande mídia” se opõem ao tratamento precoce contra a doença.
“Desde o início da pandemia, apoiamos a autonomia do médico na busca do tratamento precoce, seguindo recomendação do nosso Conselho Federal de Medicina. Eu mesmo fui um desses que fez tratamento inicial. Respeitamos a relação médico-paciente na decisão da medicação a ser utilizada e no seu uso ‘off-label’ [fora do que prevê a bula]. Não entendemos por que muitos países, juntamente com grande parte da mídia, se colocaram contra o tratamento inicial. A história e a ciência saberão responsabilizar a todos”, disse Bolsonaro.
O tratamento precoce, por meio do uso de medicamentos como cloroquina e ivermectina, vem sendo defendido pelo presidente desde o ano passado. No entanto, estudos científicos já comprovaram a ineficácia desses remédios contra a Covid. Além disso:
Bolsonaro também disse defender a vacinação contra a Covid-19 e afirmou que, até novembro, todos os brasileiros que quiserem poderão se imunizar.
Entretanto, ele se posicionou contra restrições adotadas por países contra pessoas que se recusam a tomar a vacina.
“Até novembro, todos que escolheram ser vacinados no Brasil, serão atendidos. Apoiamos a vacinação, contudo o nosso governo tem se posicionado contrário ao passaporte sanitário ou a qualquer obrigação relacionada a vacina”, disse Bolsonaro.
Essa é a terceira vez que Bolsonaro discursa como presidente do Brasil – o representante do país é encarregado de abrir oficialmente a fala dos presidentes mundiais desde 1947.
O presidente também disse que o Brasil “mudou” após a sua chegada ao Planalto e afirmou que não há corrupção em seu governo
“O Brasil mudou, e muito, depois que assumimos o governo em janeiro de 2019. Estamos há 2 anos e 8 meses sem qualquer caso concreto de corrupção”.
Apesar da declaração do presidente, autoridades encontraram indícios de corrupção no caso da compra da vacina Covaxin, utilizada contra Covid-19. O governo, diante da suspeitas de irregularidades, cancelou o contrato.
O contrato da Covaxin se tornou alvo da CPI da Covid no Senado e do Ministério Público Federal depois que o servidor Luis Ricardo Miranda, do Ministério da Saúde, e o irmão dele, o deputado Luis Miranda (DEM-DF), denunciaram “pressão atípica” dentro da pasta pela aceleração da compra da vacina.
Um grupo de juristas coordenado pelo ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior entregou recentemente à CPI da Covid um estudo sobre os possíveis crimes cometidos por Bolsonaro durante a pandemia. O grupo citou o caso Covaxin e aumentou um possível crime de prevaricação, que fica caracterizada quando um funcionário público dificulta ou atrasa alguma obrigação de seu cargo.
“Diante do conjunto fático probatório produzido pela CPI, é possível afirmar que os irmãos Miranda não faltaram com a verdade quando denunciaram fatos graves de corrupção no Ministério da Saúde”, justificaram os juristas.
Bolsonaro também citou as manifestações em favor do governo que ocorreram no 7 de Setembro, quando, em ameça golpista ao Supremo Tribunal Federal (STF), ele afirmou que não cumpriria mais decisões do ministro Alexandre de Moraes.
O presidente disse ainda que “no último 7 de Setembro, data de nossa Independência, milhões de brasileiros, de forma pacífica e patriótica, foram às ruas, na maior manifestação de nossa história”
Os atos de 7 de Setembro não foram os maiores já registrados no país. Apesar de não haver um balanço nacional, as imagens registradas no dia revelam uma manifestação muito menor que as registradas contra a presidente Dilma Rousseff, por exemplo.
Bolsonaro dedicou parte do discurso à preservação da Amazônica, ponto em que o governo é criticado dentro e fora do país em razão da política ambiental e dos altos índices de desmatamento e queimadas.
O presidente afirmou que “na Amazônia, tivemos uma redução de 32% do desmatamento no mês de agosto, quando comparado a agosto do ano anterior”.
Essa redução percentual é verdadeira: em agosto de 2020, houve 1.359 km2 da Amazônia Legal sob alerta de desmatamento, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Em agosto deste ano, foram 918 km2 – a queda corresponde a 32%.
Os dados, entretanto, não traduzem toda a realidade ambiental e ignoram o contexto de avanço da destruição sob a gestão do atual governo.
Em 2021, por exemplo, a Amazônia teve o primeiro semestre com a maior área sob alerta de desmate em 6 anos.
Apesar de ter havido uma queda de 5% no desmatamento da Amazônia entre as temporadas de 2019-20 e 2020-21, as áreas sob alerta nos dois períodos ainda são as maiores desde 2015, quando o Inpe começou a medi-las.
O presidente disse que 84% da floresta está “intacta” e que no mês de agosto de 2021 houve queda de 32% no desmatamento na região, na comparação com o mesmo período de 2020. Boslonaro convidou os presentes na assembleia a visitar a floresta.
Entretanto, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o desmatamento acumulado hoje na Amazônia corresponde a mais de 800 mil km2. A área original da floresta monitorada por satélite nos nove Estados da Amazônia Legal é de 3.994.454 km2. Ou seja, foram desmatados cerca de 20% da floresta, permanecendo 80% de pé.”
No discurso, Bolsonaro também questionou, em tom retórico, “qual país do mundo tem uma política de preservação ambiental como a nossa?”.
Outros biomas também têm tido perdas com a política ambiental brasileira: no Cerrado, por exemplo, houve a maior área sob alerta de desmatamento para agosto desde 2018. O número de focos de incêndio – considerados os números de janeiro a agosto – foi o maior desde 2012.
No Pantanal, houve recorde de queimadas em 2020. Um levantamento divulgado neste mês aponta que 17 milhões de animais vertebrados morreram por causa das chamas no bioma no ano passado.
Ao falar sobre economia, Bolsonaro distorceu informações sobre o desempenho do Brasil e sobre a criação de empregos no país.
Bolsonaro afirmou que a estimativa para o crescimento da economia brasileira em 2021 é de 5%. E que o Brasil tem um dos melhores desempenhos econômicos neste ano entre os países emergentes.
“Lembro ainda que o nosso crescimento para 2021 está estimado em 5%”, disse, no discurso.
A estimativa de 5% para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) em 2021 foi feita pelo governo. O mercado financeiro, porém, vem reduzindo paulatinamente a previsão para o desemprenho.
Além disso, em um ranking de 48 países, o Brasil aparece em 38º em desempenho no PIB do segundo trimestre, atrás de países como México, China, Chile, Peru e Turquia.
Bolsonaro afirmou ainda que, durante seu governo, o Brasil “recuperou a credibilidade externa e, hoje, se apresenta como um dos melhores destinos para investimentos.”
A bolsa brasileira de fato vem recebendo volumes recordes de investimento estrangeiro. Parte dessa entrada se deve, no entanto, à recente alta de juros, e ao enorme volume de recursos disponíveis lá fora, graças principalmente ao pacote bilionário de ajuda dos Estados Unidos.
O presidente brasileiro afirmou ainda, em seu discurso, que o Brasil terminou 2020 “com mais empregos formais do que em dezembro de 2019” e que isso ocorreu “graças às ações do nosso governo com programas de manutenção de emprego e renda que nos custaram cerca de US$ 40 bilhões.”
Havia mais empregos formais ao final de 2020 que no fim de 2019. No entanto, as vagas perdidas entre março e junho do ano passado não foram totalmente recuperadas.
Além disso, segundo dados do IBGE, o desemprego estava em 14,1% em agosto deste ano, próximo às máximas históricas, e 14,4 milhões de brasileiros estavam desempregados naquele mês.
Na volta do evento (semi) presencial, Bolsonaro é o único dos líderes do G20 (grupo das 19 principais economias do mundo e a União Europeia) presentes a dizer que não tomou a vacina contra a Covid-19.
Jornais dos Estados Unidos e do Reino Unido noticiaram que o presidente brasileiro participa da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) sem ter tomado a vacina.
A sede da ONU onde é realizada a assembleia fica na cidade de Nova York, onde há exigência de um comprovante de vacinação para que as pessoas entrem em ambientes públicos que são fechados (como o saguão onde acontece a reunião).
A prefeitura de Nova York pediu para que os chefes de estado fossem obrigados a comprovar vacinação para entrar no prédio das Nações Unidas, mas o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse que a entidade não tem como exigir isso.
Na segunda (20), o ministro do Turismo, Gilson Machado Neto, publicou uma foto em uma rede social em que Bolsonaro e parte da comitiva brasileira comem pizza na rua, em Nova York.
A cidade exige, desde 16 de agosto, que as pessoas apresentem comprovante de vacinação contra a Covid-19 para frequentar lugares fechados, como restaurantes, cinemas, teatros e academias.