Autismo: coisas de mães

Hoje, os familiares e amigos de pessoas com TEA (Transtorno do Espectro Autista) do estado do Acre comemoram a Lei Estadual nº 3.722 sancionada pelo governador Gladson Cameli. A lei sancionada no mês dedicado a reflexão e conscientização da sociedade quanto a causa autista prevê prazo indeterminado para o laudo médico das pessoas portadoras do TEA.

Essa lei representa uma grande conquista de direitos para as pessoas com TEA do estado do Acre; haja vista o alto valor dos exames para aquisição do laudo médico, e a pouca disponibilidade de profissionais no Sistema Único de Saúde (SUS) para atender uma demanda que só vem aumentando.

A lei estadual nº 3.722 comunga e implementa direitos já adquiridos e previstos na legislação federal 12.764/2012. A chamada Lei Berenice Pianna representa uma conquista extremamente importante para todas as pessoas com TEA e a sociedade em geral. Nessa lei foram conferidos direitos específicos aos autistas, no que tange a atenção integral às necessidades de saúde das pessoas com TEA; englobando o diagnóstico precoce, atendimento multiprofissional especializado, a nutrição adequada e terapia nutricional, além de medicamentos e todas as informações necessárias ao diagnóstico e tratamento.

No viés federal, acompanhamos um projeto de lei que está sendo tramitado no Congresso (PL 3.749/2020), cuja proposta é alterar a lei 12.764/2012 e a lei 8.112/90, especificando como permanente o caráter do laudo que diagnostica o transtorno do espectro autista. Alguns Estados da Federação estão na frente; pois, já aprovaram e sancionaram suas Leis Estaduais atestando ao laudo médico prazo de validade por tempo indeterminado. O nosso estado do Acre acompanha essa evolução e nos garante essa vitória, tornando ainda mais importante para as famílias que dependem do SUS; tendo em vista que os municípios do nosso estado carecem de profissionais competentes (neuropediatras, neurologistas ou neuropsicólogos) para emitirem tal laudo.

Infelizmente, as pessoas que não detém recursos financeiros para viajar ou custear consultas particulares com esses profissionais, ficam sem a sua principal “arma” para os autistas: o laudo médico. Sem o laudo médico, a pessoa com TEA não consegue lutar por nenhum dos seus direitos! Por esse motivo, a lei estadual é uma conquista, tanto para as pessoas com TEA, quanto para os seus familiares.

Contudo, a busca por igualdade, respeito e reconhecimento ainda está longe de ser uma realidade natural e/ou adquirida para os nossos adolescentes dentro do espectro. No dia 09 de abril de 2021, jovens de todo o Brasil foram surpreendidos com a prorrogação das inscrições do SISU (Sistema de Seleção Unificada), utilizada para o ingresso no ensino superior em muitas universidades brasileiras. O pronunciamento do Ministro da Educação ocorreu nas últimas horas do prazo final. A prorrogação foi justificada como uma medida para facilitar o acompanhamento das vagas pelos candidatos, a partir da exclusão das conhecidas “notas fantasmas”.

Embora a justificativa esteja velada por um discurso cheio de “boas intensões”, é importante destacar que a mudança advinda do ato de prorrogação alterou não só o cronograma previsto no Edital SISU 2020, mas as próprias regras do certame; uma vez que a metodologia de acompanhamento das notas foi mudada. Além disso, é importante mencionar os comportamentos causados nos estudantes decorrentes da notificação tardia quanto a mudança de prazo e regras do SISU; dentre eles, destacamos a ansiedade. Esse comportamento é ainda mais acentuado em indivíduos autistas, cuja característica considera, dentre outras coisas, a organização sistemática das tarefas e dificuldades com o “novo”, o imprevisto, o diferente.

Mas esse não foi o único acontecimento que causou estranhamento nessa edição do SISU. Os candidatos deficientes que desejavam submeter a nota do ENEM para as vagas de ações afirmativas eram “bonificados” com uma pontuação extra, de quase cem pontos, se concordassem submeter a nota nas vagas de ampla concorrência. “_ Que maravilha! A nota fica maior e eles passam a ter mais chances de serem aprovados”, pode dizer alguém; mas, nós dizemos NÃO! E ainda questionamos quais as intenções decorrentes dessa “bonificação” e suas consequências.

É importante destacar que os discentes com deficiência que ingressam em instituições públicas de ensino superior são submetidos a uma banca para comprovação de perfil da vaga pretendida. Uma vez comprovada, gozam dos seguintes direitos: monitoria individual; acompanhamento especializado, com adequação de materiais; maior tempo para a realização das atividades avaliativas; e, caso esteja previsto no planejamento orçamentário da instituição, bolsas integrais. Consequentemente, os discentes que não comprovam a condição de deficiente não têm esses direitos resguardados.

Mas, qual a “porta de acesso” para as vagas de ações afirmativas para os sujeitos autistas? 1) A prova do ENEM: na condição de deficiente, e apresentação de laudo comprobatório. Contudo, isso não garante em nada as adequações da prova, seja em relação a linguagem e/ou ao número de questões, por exemplo; mas, apenas, a adição de 60 minutos em relação aos demais candidatos, assim como o auxílio de um ledor e/ou escriba – quando solicitados. 2) A inscrição no SISU: na condição de deficiente, mediante a submissão da nota do ENEM – considerando a média e o número de vagas, e a comprovação documental da condição de deficiência.

Ora, se o sujeito submete sua nota às vagas em geral, e obtém aprovação em ampla concorrência, o que justifica a necessidade de Atendimento Educacional Especializado? Esse direito adquirido demandará tempo e esforço coletivo do discente e familiares junto à instituição para ser comprovado e readquirido. Os quase cem pontos de bônus ofertado no ato da inscrição do SISU nos parece ser uma “manobra” para evitar os investimentos posteriores que demandam a inclusão dos indivíduos com deficiência no ensino superior.

Enquanto mães e defensoras da causa autista, nos entristece saber que nossos jovens autistas poderão estar sujeitos a essas situações que somente reforçam o desrespeito com a pessoa deficiente e nos revelam o quão longe estamos, de fato, da sociedade inclusiva que idealizamos; que ilustram diversos perfis e discursos do cidadão comum nesse mês de conscientização sobre o autismo.

De qualquer forma, enquanto mães de indivíduos autistas, estamos de acordo de que esse é o tipo de discussão que devemos e desejamos ter durante esse período de conscientização: mês de abril. Sabemos que existe um caminho que já começou a ser trilhado no sentido de inclusão social dos autistas, mesmo que ainda estejamos distantes da efetividade ideal desse direito. Enquanto não houver conscientização, não conseguiremos evoluir.

Talvez isso não faça muito sentido para você, mas te convidamos a pensar nessas situações que envolvem a realidade das famílias de pessoas com transtorno do espectro autista. É muito mais do que laços coloridos ou de cor azul. É o combate direto contra o preconceito de uma sociedade que espera, cobra, exige estereótipos específicos capazes de distinguir as diferentes deficiências; e que, mesmo assim, não trata os “diferentes de forma diferente”, mas os engloba em um rol comum – como se toda deficiência fosse igual.

O autismo não tem cara, não tem traços específicos, mas constantes revelações entre fases, gêneros, sujeitos, acolhimentos, tempo e respeito. Talvez o autismo seja a melhor forma de expressão da individualidade humana: que vibra, que sofre, que ama, que se entristece, que ouve, que entende quando alguém os acolhe, ou os rejeita. É provável que o ideal do olhar fixo entre os interlocutores durante o ato discursivo seja uma necessidade somente nossa – os considerados “sujeitos típicos”; mas, nesse mundo com tantas violências e agressões gratuitas ao próximo, à sociedade, à natureza etc. quem se arrisca mesmo a exigir essa condição de sujeito “normal”?

Enquanto mães, sabemos que muito ainda deve e precisa ser feito. Por enquanto, e pelo tempo que existirmos, seremos as vozes dos nossos filhos e acolheremos todos os outros que também estão no espectro, mas precisamos nos reconciliar com a dinâmica natural dos seres vivos: o estado passageiro dos seres. Sendo assim, é importante a promoção de espaços de discussões para a verdadeira conscientização e inclusão dos nossos autistas. Não será fácil, mas também não é impossível!

Por: Leila Daiana Dantas Mathias (mãe de autista e advogada 4.647 OAB/AC); Simone Cordeiro (mãe de autista e professora doutora em Estudos Linguísticos).