“É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente”. A afirmação consta no artigo 70 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e rege as leis brasileiras voltadas para os menores desde 1990. Durante a pandemia, o Acre presenciou a chegada e retenção de muitos migrantes que usam o estado como rota.
Mas, o que era passagem virou destino. As fronteiras do estado foram fechadas e muitos não conseguiram sair do país, outros chegam de forma irregular – por meio de coiotes – fugindo de guerras ou miséria em seus países.
Este fenômeno humano de migração gerou outras questões relacionadas à assistência social: o aumento dos pedintes nas ruas de Rio Branco e, muitas vezes, acompanhados com crianças, até mesmo com poucos dias de vida. Foi aí que o Ministério Público do Acre (MP-AC) decidiu iniciar um projeto para que esses grupos conheçam o ECA e não deixem as crianças em situação de vulnerabilidade.
Esta não é a primeira vez que o MP se posiciona sobre as crianças estrangeiras nas ruas. Em junho deste ano, o MP instaurou um procedimento administrativo para investigar famílias que usam os filhos para pedir dinheiro e outros tipos de ajuda nas ruas e semáforos de Rio Branco.
“Aumentou o número de migrantes e, principalmente, de crianças e adolescentes entrando no Brasil. Chegamos a conclusão que tínhamos que enfrentar isso e criamos esse projeto ‘Migração: Infância Protegida’. Nós temos o dever, tanto da família, como da sociedade de ter esse cuidado, essa proteção com prioridade absoluta”, explica a coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Defesa da Criança e dos Adolescente do MP, Vanessa Muniz.
O projeto é dividido em fases e conta com a parceria de todos os órgãos de proteção à infância. No primeiro momento, o MP teve que romper as barreiras linguísticas e culturais para organizar encontros e sensibilizar os pais e responsáveis sobre o que preconiza o ECA e que o descumprimento dele pode gerar punições judiciais.
“Se a família não está cuidando, o Estado tem essa obrigação e a Constituição não faz diferença se é criança estrangeira ou não. Então, os migrantes, entrando no Brasil, mesmo que ainda não estejam naturalizados, têm também os mesmos direitos e deveres de um brasileiro que seja naturalizado”, pontua.
Vanessa diz que mesmo sem poder precisar, o número de estrangeiros no estado aumentou consideravelmente na pandemia. Uma rede de diálogo foi montada e foi dado o pontapé inicial a este projeto: visitar os abrigos e conscientizar esses grupos dos direitos e deveres no estado brasileiro.
“Com isso, eles ficam advertidos de uma forma verbal que o comportamento deles no que tange a criança e adolescentes têm consequências. Nesse fluxo, pode ter uma perda temporária dessa guarda”, destaca a promotora.
Francisco Maia Guedes, da 3ª Promotoria Especializada de Defesa da Infância e Juventude, que também acompanha este projeto, salientou que neste primeiro momento o diálogo é crucial.
“A principal mensagem foi que eles são bem-vindos, mas, quando passam pela fronteira, passam a ter os mesmos direitos do brasileiro, mas também passam a ter os mesmos deveres e um dos principais deveres é que a criança é prioridade absoluta e tem que ser protegida desde sua concepção, então, criança não pode estar nessa situação que a gente observou; em semáforos, aos perigos dos carros, sol escaldante e tudo mais, então, dissemos que a partir de agora iremos fazer toda uma fiscalização. Fizemos um diálogo e, se não houver uma compreensão, em última instância chega no MP e poder Judiciário e acabamos tomando providências mais contundentes, mais duras”, destaca o promotor.
Em Rio Branco, há pelo menos quatro pontos que atendem os estrangeiros que buscam sair do Brasil pelo Acre. São eles:
Até setembro, eram ao menos 70 crianças e adolescentes distribuídas nestes pontos. O número muda constantemente, pois muitos estão de passagem.
“A última fase, que é a que a gente não quer chegar, porque acreditamos no diálogo, é destituição do poder familiar desses filhos, inclusive podendo ir para uma família substituta, além das sanções de ordem penal, porque deixamos claro que existe o crime de maus-tratos e que podem responder criminalmente por isso como qualquer brasileiro”, pontua Maia.
O Estado nesses casos também conta a sociedade civil organizada, como a pastoral do Migrante da Cáritas Diocesana. Esse grupo faz o trabalho de acolhimento, suporte e consegue mantimentos para esses estrangeiros.
Aurinete Brasil, vice coordenadora da pastoral, explica que eles atuam não só na entrega de alimentos e kits de higiene, mas também conseguem ajudar muitos estrangeiros a resolver as questões documentais e, inclusive, vagas de emprego.
“Nosso trabalho é voltado para essa ajuda emergencial, mas também no sentido de apoio com documentação, orientação trabalhistas, fazemos ainda orientações de onde buscar as informações para se obter a carteira de trabalho, documentos para aqueles que querem ficar regularizados aqui e para aqueles que querem permanecer em Rio Branco”, lista.
Atualmente, o grupo acompanha em torno de 58 famílias na capital. Mergulhada nessa ajuda humanitária há anos, Aurinete garante que os estrangeiros que chegam no estado não passam necessidade.
“Principalmente nesta pandemia, temos recebido bastante ajuda de projetos para apoio a esses migrantes, então, é um trabalho que a gente tem feito há algum tempo e agora mais intensificamente por conta da pandemia. Temos parceiros que se comprometem a doar e a gente tem que ver o migrante como esse que vem para contribuir.”
Ela diz que os venezuelanos têm grande habilidade com panificação, o que acaba gerando uma demanda para suas contratações.
“Nós encaminhamos para empresas que se dispõem a acolher. A gente prepara o currículo, faz o encaminhamento de forma humanizada e acompanha se a empresa vai garantir os direitos deles, se regularizou, porque eles têm os mesmos direitos de brasileiros”, salienta.
Todo esse acompanhamento, tanto pela rede do Estado, como da sociedade civil organizada atende a todos os migrantes.
“Nenhum tem necessidade de estar nas ruas, porque nós estamos acompanhando. Eles têm alimentação suficiente, levamos uma cesta básica por semana para terem autonomia, há um espaço familiar e não há necessidade de estar com as crianças em situação de mendicância, eles têm o suficiente para se alimentar. A gente pede para que as pessoas, a sociedade, não deem dinheiro para eles nas ruas, principalmente àqueles que estão com criança”, finaliza.
Fugindo da crise, os venezuelanos buscam refúgio no Brasil por causa da crise que atingiu o país nos últimos anos. Com a entrada, é comum encontrá-los nos semáforos pedindo ajuda financeira para bancar as despesas pessoais.
Há mais de 15 anos a Venezuela enfrenta uma crescente crise política, econômica e social. O país vive agora um colapso econômico e humanitário, com inflação acima de 1.000.000% e milhares de venezuelanos fugindo para outras partes da América Latina.
O Brasil é uma das rotas escolhidas e muitos chegam ao Acre e ocupam as ruas da capital pedindo esmolas para sobreviver.
No final do ano passado, um grupo de 60 indígenas da etnia Warao, a maior da Venezuela, chegou ao Acre em busca de refúgio e abrigo. Os indígenas começaram a chegar ao estado acreano em setembro deste ano e, desde então, ainda é comum encontrá-los em semáforos pedindo ajuda.
Em junho deste ano o Ministério Público do Acre (MP-AC) instaurou um procedimento administrativo para investigar famílias que usam os filhos para pedir dinheiro e outros tipos de ajuda nas ruas e semáforos de Rio Branco.
Esta semana, a secretária nacional da Família, Angela Gandra, esteve na região para tratar e analisar a ajuda humanitária dada a esses estrangeiros. Além de questões sanitárias, ela esteve nas cidades de fronteira e também do Peru para entender como tem sido este fluxo no estado.
“Fomos questionados sobre o cuidado com os venezuelanos, mas, somos humanos, somos uma mesma família, queremos cuidar deles como gostaríamos que cuidassem de nossos brasileiros se estivessem nessa situação. Por isso, estamos propondo ações humanitária e isso é um benefício para o local, porque regularizamos uma situação e evitamos outras irregularidades criminosas, tais como tráfico de pessoas, trabalho escravo, prostituição, pedofilia e trabalho infantil, então, em tacada só podemos resolver muitos problemas”, defende.