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terça-feira, novembro 26, 2024

Padres e ex-seminarista negros relatam racismo dentro da Igreja Católica

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EXCLUSIVO FOLHA DE SÃO PAULO – No dia 7 dezembro de 2010, o padre Geraldo Natalino, conhecido como padre Gegê, foi selecionado para ser professor na Comissão de Cultura Religiosa da unidade da Gávea da PUC no Rio de Janeiro. Ele nunca assumiu o cargo e alega ter sido impedido pelo então bispo auxiliar e responsável pela universidade sem jamais receber uma justificativa.

Padre Gegê, responsável pela Paróquia Santa Bernadete, em Manguinhos (RJ), é negro. Dom Paulo César, o então bispo auxiliar e hoje bispo da diocese de São Carlos (SP), é branco.

O caso veio à tona após o mundo assistir, pela tela do celular, ao assassinato de George Floyd por um policial branco nos EUA. Centenas de milhares de pessoas foram às ruas não só nos Estados Unidos mas também na Europa e na América do Sul contra o racismo estrutural.

Sob o intenso debate que o mês de protestos pelo mundo causou, padre Gegê decidiu expor suas cicatrizes. Dez anos depois de ser impedido de assumir o cargo na universidade, o padre contou em texto publicado em redes sociais do racismo de que foi alvo na Igreja ao longo de 26 anos.

A situação relatada pelo padre é fruto de uma história de conivência com a escravidão e de racismo estrutural, segundo padres ouvidos pela Folha. Uma das consequências do racismo na Igreja é a dificuldade de acesso de religiosos negros a posições de destaque ou cargos altos.

Atualmente há padres e bispos negros na Igreja brasileira; não é possível dizer ao certo quantos são, porém, porque não há dados quantitativos atuais sobre o assunto. Segundo a assessoria de imprensa da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), o Anuário Católico do Brasil, que conta com um censo dos religiosos da instituição, não será publicado em 2020.

Questionada sobre o registro mais recente, de 2015, a assessoria da instituição informou que não seria possível compartilhar as informações devido ao regime de trabalho home office causado pela pandemia do novo coronavírus.

Em um país onde 56% da população se declara negra (preta ou parda), segundo o IBGE, a Pastoral Afro-Brasileira da CNBB estima que apenas 2,7% dos padres sejam negros.

Isso quer dizer que, dos 14 mil padres no Brasil, os negros somam 380. A situação se repete entre os prelados negros, que são 7,6%, ou 37 de 483. Prelados são autoridades da Igreja, como cardeais, bispos e arcebispos. No Brasil, segundo o diretório da CNBB, há apenas três arcebispos negros no país. Não há nenhum cardeal negro.

A baixa representatividade negra dentro da Igreja fica evidente quando comparada a quantidade de sacerdotes e de fiéis negros. No Brasil, segundo o censo do IBGE de 2010, católicos somam 64,6% da população. Dentre eles, metade são negros.

A Pastoral Afro-Brasileira não recebe denúncias de racismo contra padres, mas, reconhece que a Igreja sabe do problema e tem buscado solucioná-lo por meio de videoconferências, minicursos e ciclos de vivências de enfrentamento ao racismo, em especial nos estados de São Paulo e do Paraná. As iniciativas incluem padres, leigos e comunidade em geral.

“A missão da pastoral é animar, acolher a identidade, a inculturação e a culturalidade e ancestralidade do povo negro. Nestes últimos anos estamos sendo mais incisivos para apontar para a ‘Igreja’ (clero e leigos), que não tem lógica falar de Deus e discriminar.

O trabalho de coscientização ainda está no começo. O padre Gegê alega que foi impedido de lecionar na unidade da Gávea, um bairro rico. Atualmente, ele dá aulas na unidade de Duque de Caxias, um dos municípios da Baixada Fluminense com maior população vivendo em favelas, segundo o censo do IBGE de 2010.

À Folha, o padre disse ter sido convidado —após sua denúncia ser amplamente compartilhada nas redes sociais— para uma audiência com o cardeal dom Orani João Tempesta no último dia 18 de junho, ocasião em que foi comunicado de que seria integrado ao corpo docente da PUC-RJ.

“O cardeal se comprometeu com a reparação econômica e a tratar do meu ingresso no corpo docente da PUC. Os padres que me acompanham nesse processo de luta e dor são bastante solidários, mas preferem não se manifestar publicamente. Quando se confronta com a estrutura de poder da Igreja, há sempre o medo de sofrer represálias. Decerto, meus escritos abalaram a paz da ‘casa grande’ eclesiástica”, disse.

No dia 22 de junho, padre Gegê foi diagnosticado com uma reação aguda ao estresse e precisou ser afastado. O diagnóstico se deve, de acordo com ele, a reações aos seus relatos, publicados há cerca de um mês e inspirados pela onda de protestos contra o racismo no mundo. Ele é acusado por seguidores de se aproveitar da morte de George Floyd para ganhar visibilidade.

Dom Paulo César disse, em nota enviada à Folha, que a contratação de padre Gegê como professor foi analisada à época pela administração da Arquidiocese do Rio. “Dom Paulo era, tão somente, o bispo que representava a Arquidiocese junto à universidade. Não houve anormalidades nesse processo”, afirmou.

“Esclarecemos que dom Paulo obteve conhecimento da manifestação do referido padre apenas pelas redes sociais, sem encontrar nenhum registro de reclamação na universidade nem na Justiça. Dom Paulo afirma que tem consciência de que desempenhou seu trabalho na PUC Rio com rigor acadêmico, prudência e justiça.”

REUNIÕES CLANDESTINAS E LIVROS PROIBIDOS
Pré-candidato pelo PT à prefeitura de Fátima do Sul (MS), José Geraldo da Rocha foi seminarista no Rio Grande do Sul, mas foi expulso por criticar o racismo na Igreja após passar a militar junto com outros padres e seminaristas ligados ao grupo Agentes de Pastoral Negros, fundado na década de 1980.

Além de não ter nem sequer sido ordenado, o que, segundo ele, confirma a hipótese de que a Igreja dificulta acesso de negros a cargos de destaque, o racismo estrutural também impediu que a instituição adotasse uma formação de padres plural e que incluísse a discussão racial e tratasse dos erros da Igreja durante a escravidão.

“O racismo era muito forte. Minha congregação entendeu por bem me expulsar. Então fui para o Rio de Janeiro, onde aconteceu, em 1987, o primeiro encontro de seminaristas negros. Leonardo Boff nos acolheu em sua casa em Petrópolis. Nós tínhamos a compreensão de que se, continuássemos enfrentando os padres brancos, seríamos todos expulsos”, afirma.

A estratégia adotada pelo grupo, que tinha cerca de 30 seminaristas no primeiro encontro, foi a de evitar enfrentamentos até que fossem ordenados, ou seja, se tornassem padres. Dessa maneira, portanto, teriam mais força para lutar.

Missa Afro celebrada em 2019. O encontro é realizado anualmente no segundo sábado de novembro em Aparecida do Norte

Rocha conta que, ao tomar consciência de sua negritude, começou a perceber o racismo em pequenos atos cotidianos. “Eu reagia às situações de racismo que via na Igreja e meus superiores me achavam problemático. No Rio Grande do Sul, entre 90 seminaristas, éramos apenas 2 negros. Quando fui expulso, um padre me disse: ‘você era um menino tão bom, pena que entornou’.”

Segundo ele, a formação e preparação dos seminaristas para a ordenação não leva em conta questões raciais. “O processo de formação era excludente. Não contempla as realidades presentes no mundo das africanidades. Na época, discutia-se a teologia da libertação e nós lutamos por um programa de estudos que a contemplasse. Durou apenas um semestre”, diz.

A teologia da libertação é uma corrente de estudos religiosos que busca reinterpretar os ensinamentos de Jesus Cristo de maneira que caiba à Igreja a missão de lutar contra a desigualdade social, econômica e política.

Essa corrente de pensamento foi fortemente influenciada pela necessidade da instituição de se posicionar diante da escalada autoritária da ditadura militar brasileira e fez parte da formação teórica de padres como Gegê e Frei David Santos, diretor do Educafro.

Para frei David, a Igreja tem um passado permissivo com a escravidão e foi totalmente omissa. Um exemplo é o uso de escravas em conventos como o de Mercês e o das Irmãs Clarissas, ambos na Bahia.

“A Igreja Católica está comprometida até o pescoço com as injustiças que o povo negro sofreu. O convento das Irmãs Clarissas da Bahia, para você ter uma ideia, tinha três escravas negras para servir a cada religiosa branca. Isso foi um atentado total à lei de Deus”, afirma.

Para padre Gegê, a Igreja, em especial no Brasil, é vista no geral de forma positiva, o que favoreceria a influência do racismo estrutural dentro da instituição.

“Quem ousar criticar pode ser considerado sim um inimigo do Cristo e de sua Santa Igreja. A exposição de minhas feridas ajuda no urgente e necessário processo de desmistificação. O papa Francisco também tem prestado grande e histórico serviço nesse sentido, mas é preciso olhar para a Igreja com lentes mais realistas”, afirma.

Apesar das críticas, a Igreja ensaiou revisões da sua postura. Em 1988, por exemplo, o tema da Campanha da Fraternidade foi direcionada à população negra. “A Igreja e o Negro” tinha como objetivo nomear “uma série de coisas infames” como “a escravidão, contrária ao Evangelho”.

Segundo a carta assinada pelo então papa João Paulo 2o, a escravidão “tem a sua origem última no pecado e que têm a mesma origem aos fermentos de ódio e de divisão, que alimentam os preconceitos raciais e proliferam em situações conflituosas e em discriminações e emarginações”.

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