Texto de Arison Jardim, jornalista
Na sala da sua casa, logo após ao almoço, ouvindo a Rádio do Egito a criança Abrahim Farhat Neto, o Lhé, começava sua jornada, “saindo da sua aldeia”. Filho do libanês Hechem Abrahim Farhat e da descendente árabe Silvia Maluf Fahat, Lhé nasceu e construiu sua história no Acre. Nesse pedaço de chão amazônico, nunca deixou suas origens árabes e esteve do lado de todas as lutas sociais possíveis, do seringueiro amazônida ao povo palestino.
“Sou filho dessa sagrada miscigenação que me transformou em um caboclo árabe amazônico”, se autodenominava em um poema. Aqui, o movimento político sempre fez parte de sua trajetória, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores no Acre. Fez parte do 01º Diretório Nacional do partido e foi candidato ao senado nas eleições de 1982. Mais que isso, com a herança social de sua família, fez parte dos movimentos de luta política e trabalhadora que movimentam o Acre desde a década de 1960 até os tempos atuais.
“Papai e mamãe eram solidários. A beleza dessa família que se tornou envolvida com a luta política”, afirmava ao lembrar dos anos de ditadura militar. Esta foi uma época em que Lhé e sua família deram apoio para muitos dos que sofriam os abusos do regime ditatorial. “A maioria dos perseguidos políticos almoçava lá em casa, quando a maioria das casas se fechava. Era mais uma questão de solidariedade, uma questão humanitária. Os caras eram muito perseguidos”, relembra.
Participou da marcha dos Cem Mil, no Rio de Janeiro, em 1968. Mas eram nas lutas de sua terra que esteve mais presente. Quase como um historiador, conhecia cada detalhe do que ia se construindo. Dos primeiros empates com a professora Ivanilde, na comunidade Catuaba, e no Seringal Bom Destino com o Barba Azul, até os embates que ocorreram em Xapuri, Brasileia e Assis Brasil, com Chico Mendes e Wilson Pinheiro.
“Os empates saíram com o Chico Mendes e Wilson Pinheiro depois. Quem enviava as ferramentas, terçado, foice e algumas coisas mais, era a Casa Farhat (inaugurada em 1912). Ferramentas para fazer os empates como o terçado, a foice, às vezes a espingarda, porque os jagunços tinham AR15”, contava.
Os últimos dias
“Olha aí a filha do Wilson alimentando o velho”, diz o simpático senhor de cabelos brancos e sorriso gigante no rosto. Levando ovos caipiras da sua colônia, lá em Brasileia, Ilmara Pinheiro, filha do líder sindical do Acre, Wilson Pinheiro, chega na casa do amigo Lhé. Em uma tarde, na sala de sua casa no centro de Rio Branco, ele agradece a visita e inicia a falar sobre seu estado de saúde, que há poucos meses lhe deu algumas surpresas.
Esta entrevista foi concedida pelo companheiro Lhé em junho de 2016, após período de internação no Hospital do Idoso, em Rio Branco. “Quando fiquei internado lá, descobri que aquelas dores eram uma grande infecção no rim. Descobrimos ainda que tinham três veias do meu coração entupidas”, relatou, entre risos e um olhar de preocupação. Sempre risonho, Lhé manteve até os últimos dias de sua vida a casa sempre aberta para os inúmeros amigos. Mesmo quando falava da doença no rim, não deixava de fazer piadas com sua situação, como se soubesse, que seu dever humanitário tivesse sido feita com toda intensidade possível.
Hoje, na manhã de sábado, 16 de maio de 2020, o Acre perde um filho que lutou pela liberdade de todos. Seu espírito seguirá inspirando outros combates, assim como inspirou e ajudou tantas famílias acreanas.