Médicos e enfermeiros na Itália foram celebrados como heróis por tratar pacientes com coronavírus que estavam gravemente doentes.
Mas agora eles estão sofrendo. Médicos da Lombardia, a região mais atingida, estão lutando para permanecer bem.
Paolo Miranda é um enfermeiro intensivista na cidade de Cremona. “Estou mais irritado”, diz ele. “Fico com raiva mais facilmente e começo brigas.”
Há alguns meses, Paolo decidiu documentar a situação sombria dentro da unidade de terapia intensiva, tirando fotografias. “Eu nunca quero esquecer o que aconteceu conosco. Logo isso se tornará história”, ele diz.
Agora, com suas fotos, ele quer mostrar como seus colegas estão lidando com a chamada Fase 2 do confinamento na Itália, quando a vida começa a voltar ao normal no país.
“Embora a emergência esteja diminuindo, nos sentimos cercados pela escuridão”, diz ele. “É como se estivéssemos cheios de feridas. Carregamos tudo o que vimos dentro de nós.”
Com a diminuição da emergência, médicos e enfermeiros agora têm tempo para refletir; dizem sentir vazio e escuridão — Foto: Paolo Miranda via BBC
É um sentimento ecoado por Monica Mariotti, também uma enfermeira intensivista. “As coisas estão muito mais difíceis agora do que durante a crise”, diz ela.
Tínhamos um inimigo para lutar. Agora que tenho tempo para refletir, me sinto tão perdida, sem rumo.”
Durante a crise, eles ficaram sobrecarregados, sem tempo de pensar. Mas a adrenalina diminui à medida que a tensão da pandemia também cai.
Todo o estresse acumulado nas últimas semanas está se revelando agora.
“Eu tenho insônia e pesadelos”, diz Monica. “Acordo 10 vezes por noite com o coração disparado e sem fôlego.”
Sua colega Elisa Pizzera diz que, durante o período de mais emergência, sentiu-se forte, mas agora está exausta.
Ela não tem energia para cozinhar ou cuidar da casa e, quando tem um dia de folga, passa a maior parte do tempo sentada no sofá.
Martina Benedetti é uma enfermeira de terapia intensiva na Toscana, e ela ainda se recusa a ver a família e os amigos, pois tem medo de infectá-los.
“Eu até me distancio socialmente do meu marido”, diz ela. “Dormimos em quartos separados.”
Até as coisas simples se tornaram esmagadoras. “Toda vez que tento dar um passeio, fico ansiosa e tenho que voltar para casa imediatamente”, admite Martina.
Agora que ela finalmente tem tempo para refletir, está cheia de dúvidas.
“Não tenho mais certeza de que quero ser enfermeira”, ela me diz. “Vi mais pessoas morrerem nos últimos dois meses do que em seis anos inteiros.”
Cerca de 70% dos profissionais de saúde que lidam com a Covid-19 nas áreas mais atingidas da Itália sofrem com o desgaste, segundo um estudo recente. “Este é realmente o momento mais difícil para médicos e enfermeiros”, diz Serena Barello, autora do estudo.
Quando lidamos com uma crise, nosso corpo produz hormônios que nos ajudam a lidar com o estresse.
Para os profissionais de saúde, isso pode impedi-los de continuar trabalhando com a intensidade e o foco exigidos pelo emprego.
Em todo o mundo, médicos e enfermeiros da linha de frente estão sendo considerados heróis por arriscarem suas vidas para tratar pacientes. Mas na Itália esse amor já está diminuindo.
“Quando eles estavam com medo de morrer, de repente todos nós nos tornamos heróis, mas eles já nos esqueceram”, diz Monica.
“Voltaremos a ser vistos como pessoas que limpam bundas, preguiçosas e inúteis.”
Em Turim, enfermeiros recentemente se acorrentaram uns aos outros usando sacos de lixo, uma referência a como tiveram que improvisar nas enfermarias devido à falta de equipamento de proteção individual.
Eles fizeram um protesto para exigir reconhecimento por seu trabalho.
“Em março, éramos heróis. Agora já fomos esquecidos!”, uma enfermeira gritou por meio de um megafone.
Um bônus por seu trabalho foi lhes prometido. Mas os profissionais ainda não viram a cor desse dinheiro.
Pelo menos 163 médicos e 40 enfermeiros morreram de Covid-19 na Itália. Quatro deles tiraram suas próprias vidas.
E, no entanto, muitos profissionais de saúde agora sentem que é quase como se essa pandemia nunca tivesse acontecido. “Sinto-me sobrecarregada de raiva”, diz Elisa Nanino, médica que lidou com Covid-19 em casas de repouso.
Desde que o bloqueio foi suspenso, ela constantemente vê pessoas bebendo e comendo juntas, sem máscaras e sem distanciamento social.
“Quero ir até eles e gritar na cara deles, dizer que estão colocando todos em perigo”, diz ela. “É tão desrespeitoso comigo e todos os meus colegas.”
Uma ponto em que todos os profissionais de saúde concordaram é que o apoio público os ajudou a superar a crise.
“Não sou herói, mas isso me fez sentir importante”, diz Paolo.
O reconhecimento público é a maneira mais poderosa que temos para ajudar os profissionais de saúde que lutam contra o TEPT, de acordo com o estudo de Barello.
“Todos nós temos um papel crucial a desempenhar agora”, diz ela. “Temos que garantir que não esqueçamos o que médicos e enfermeiros fizeram por nós.”
Os soldados podem deixar o campo de batalha e lidar com seus traumas em casa. Mas para esses médicos e enfermeiras, o próximo turno de 12 horas está sempre chegando.
Eles têm que lidar com tudo isso no mesmo lugar em que sofreram tanto.
“Sinto-me como um soldado que acabou de voltar da guerra”, diz Paolo. “Obviamente, não vi armas ou cadáveres na rua, mas, sob muitos aspectos, sinto que estava nas trincheiras.”
“Mas quando você finalmente tem tempo para refletir sobre o que aconteceu, e a sociedade está seguindo em frente, tudo pode desmoronar e você se sente mais exausto e emocionalmente angustiado”, diz Barello.
Ela se preocupa com o fato de muitos médicos e enfermeiros apresentarem sintomas de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) muito depois da pandemia. É quando o impacto de uma experiência traumática afeta a vida de uma pessoa, às vezes meses ou até anos depois.