O projeto de lei 6024/19 apresentado no fim do ano passado pela deputada federal Mara Rocha (PSDB) que reduz o tamanho da Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes representa uma grave ameaça às conquistas obtidas pelas comunidades seringueiras a partir da luta de seu líder principal, Chico Mendes. Essa é a avaliação de Raimundo Mendes, o Raimundão, primo e braço-direito de Chico durante os anos 1970 e 1980 nos movimentos de resistência contra a transformação da floresta em pasto.
Hoje, aos 75 anos, Raimundão disse que esperaria ter uma velhice mais tranquila, seguro de que as conquistas obtidas pelos extrativistas não fossem alvo de ataques por parte dos representantes eleitos por um sistema democrático. “Eu confesso que estou muito triste e muito revoltado com o que está acontecendo”, firma.
Segundo ele, o projeto de Mara Rocha – uma das integrantes da chamada bancada da motosserra – foi elaborado sem se consultar os moradores e as verdadeiras lideranças de base da unidade de proteção. “Eles se apegaram a alguns elementos que entraram na reserva sem direito a estar na reserva”, afirma. A fala é uma referência ao pequeno grupo de moradores, apontados como os maiores desmatadores, cujos seringais se transformaram em grandes fazendas de gado.
Morador do Seringal Floresta, em Xapuri, Raimundão esteve em Rio Branco na semana passada para participar de reunião que definiu o plano de ação da Aliança dos Povos da Floresta para 2020. Ele classifica o atual momento político do Acre e do Brasil como delicado e grave para as comunidades tradicionais da floresta.
Leia a entrevista dada por ele ao blog do Fábio Pontes:
Passados 30 anos da morte de Chico Mendes e da criação da reserva extrativista, a unidade de conservação idealizada pelo líder seringueiro passa por uma das maiores ofensivas por parte dos políticos locais. Como o senhor avalia toda essa situação?
Raimundão: Estamos vivendo um momento muito delicado. Se não bastassem algumas situações que a gente já vinha tendo dentro da reserva – como a presença de moradores que não é da nossa categoria por conta dos próprios seringueiros, extrativistas, que vendem parte de suas colocações – e com os órgãos competentes não dando a devida resposta para coibir isso, agora nós temos um problema ainda maior que é a tentativa do governo central, e o estadual também não fica atrás porque faz parte dessa articulação, que é de diminuir o nosso território. É um momento muito grave que nós estamos vivendo. Isso exige nossa atenção e agilidade para retomar nossas organizações de base. Já estamos retomando este reforço com a volta da Aliança dos Povos da Floresta porque não são só as comunidades extrativistas que estão ameaçadas, mas também as indígenas. Precisamos estar todos juntos neste momento, nos reagruparmos como já fizemos á no passado.
Como o senhor avalia o projeto de lei apresentado pela deputada federal Mara Rocha (PSDB) que reduz o tamanho da Reserva Chico Mendes?
Raimundão: Eu o considero uma covardia, e aqui não falo apenas como Raimundão, mas pelos demais seringueiros. São parlamentares que no lugar de se colocarem à disposição da organização dos trabalhadores extrativistas e melhorar seu padrão de vida, captando recursos para fortalecer nosso sistema de cooperativismo, de reflorestamento, incluindo essas áreas que foram descaracterizadas, a nossa educação, eles propõem a redução da reserva. Para nós isso é um ato de covardia. Nós vamos lutar para que este projeto de lei não seja aprovado pois ele é um desastre para nossas lutas, nossas conquistas.
Quais os riscos que uma possível aprovação deste projeto representa para quem vive dentro dos seringais?
Raimundão: O incentivo para novos desmatamentos, a entrada de mais moradores sem o perfil extrativista. Isso só vai incentivar a cada dia mais a destruição da nossa reserva. Haverá uma desmoralização de nossas conquistas, uma desconfiguração da imagem de nosso companheiro Chico Mendes que deu a sua vida em defesa dessa causa e por essa causa. É uma coisa assim muito dolorida e de grande prejuízo para nós, os extrativistas.
O senhor esteve ao lado do Chico Mendes no auge do movimento de resistência contra a destruição da floresta para ser transformada em pasto nas décadas de 1970 e 1980. Junto com ele formou os “empates”, foram ameaçados de morte e outros tipos de intimidação. Hoje, aos 75 anos, o senhor imaginaria ver as conquistas obtidas a partir desta luta ameaçadas pelos políticos locais?
Raimundão: Sinceramente eu não esperava que, 30 anos depois, a gente viesse a viver uma situação dessa gravidade. Inclusive tendo um governo que se elegeu num processo democrático tomando estas atitudes contra as populações tradicionais da Amazônia. Eu confesso que estou muito triste e muito revoltado com o que está acontecendo. Eu esperava que ao envelhecer, conforme me encontro hoje com 75 anos de idade, a gente tivesse a certeza de que tudo que a gente conquistou estivesse consolidado Eu gostaria que nossas autoridades tivessem a dignidade de respeitar as nossas conquistas e ajudar a melhorar ainda mais a vida dessas populações, e que nossa Amazônia fosse defendida e preservada. Era isso o que eu esperava, mas não é o que estou vendo. Estou vendo um governo destruindo essas conquistas, inclusive usando a mentira, dizendo que as populações destas regiões estão vivendo na miséria. Isso é uma grande mentira. Se olharmos hoje os centros urbanos é lá que estamos vendo o crescimento da pobreza, que vai levar à miséria como foi no passado.
Os parlamentares que apoiam este projeto de lei chegaram a se reunir com vocês, os moradores da reserva que estão na base, reuniram-se com a comunidade?
Raimundão: Eles se apegaram a alguns elementos que entraram na reserva sem direito a estar na reserva. Eu cito um vereador lá de Xapuri que tem o nome de Capelão* e um fazendeiro da região de Brasileia. Eles [os parlamentares] se encontraram com essas pessoas. Nunca procuraram as verdadeiras lideranças da reserva. Eles fizeram todo este complô sem a nossa participação e não aceitamos este comportamento. Pelo contrário, condenamos este comportamento deles. Repito: enquanto representantes do povo do Acre eles deveriam ter a dignidade de propor melhorias para a nossa reserva, e não a destruição, a diminuição, pois isso nos humilha, desqualifica e mancha a imagem de nosso companheiro maior que foi o Chico Mendes.
O senador Márcio Bittar diz que quem mora dentro da Resex Chico Mendes vive em situação de miséria. O que o senhor acha dessa afirmação?
Raimundão: É mais uma grande mentira deste cidadão. Ele nunca viveu nas florestas 20, 30 anos atrás, Ele não sabe como era a realidade dos povos da floresta no passado e não sabe como é a realidade agora no presente. Ele tem ouvido apenas alguns interesseiros que querem destruir as nossas conquistas. Ele [o senador] é altamente injusto e mentiroso. Miséria tem na periferia das cidades, e não lá dentro dos seringais. Hoje lá dentro 90% da nossa população vivem uma melhoria na qualidade de vida que não tinha antes. Isso passa por ter uma moradia digna, segurança alimentar, acesso a serviços básicos como saúde e educação. Seu Márcio Bittar e dona Mara Rocha, irmã do vice-governador Major Rocha, deveriam ter a dignidade de ouvir as lideranças verdadeiras e não se apegar a falsas lideranças que existem lá dentro, cuja vivência dentro da reserva é apenas para atender suas ambições, suas vaidades pessoais.
E é possível sobreviver dentro da floresta sem destruí-la?
Raimundão: É possível sim viver da floresta sem destruí-la. Usar a floresta de forma estratégica, cuidadosa e viver de forma tranquila. Não só bem alimentado como também longe da violência das cidades. Hoje temos uma boa qualidade de vida dentro da reserva. Temos acesso à comunicação, saúde, escolas para nossos filhos e netos. Antes a gente vivia no abandono. São conquistas obtidas nestes últimos 20 anos que o senhor Márcio Bittar e a dona Mara Rocha nunca atuaram para que tivéssemos acesso a isso.
O senhor avalia que as atuais políticas do governo federal e estadual, mais as propostas apresentadas pela bancada em Brasília, colocam em risco o legado de Chico Mendes?
Raimundão: Todo o legado de luta do Chico Mendes e os cabelos brancos meus e dos demais companheiros que ainda estão vivos está altamente ameaçado com o comportamento deste governo e destes parlamentares.