A proposta de reforma do ensino médio que o governo federal deve anunciar na tarde desta quinta-feira (22) pode passar pela alterações de artigos da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) que definem as matérias obrigatórias do ensino médio, e das regras para as universidades elaborarem seus vestibulares. As informações são de especialistas que tiveram acesso informal às discussões por trás da elaboração do texto da medida provisória, que deve ser apresentada nesta quinta em Brasília pelo presidente Michel Temer. No entanto, a proposta não vale para os processos seletivos de 2016, incluindo o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
De acordo com a assessoria de imprensa do Ministério da Educação, o texto da medida provisória ainda estava sendo fechado no início da noite desta quarta-feira (21), e deve ser apresentado a Temer na manhã desta quinta. Às 15h, um evento está marcado com uma série de entidades da área educacional. O conteúdo, até agora, só foi divulgado em linhas muito gerais pelo ministro Mendonça Filho, e até o conselheiro nacional de Educação Cesar Callegari, que preside a comissão que avaliará e aprovará a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), afirmou que não teve acesso prévio ao texto.
Entre as entidades convidadas para o evento desta quinta está a Associação Brasileira de Escolas Particulares (Abepar). Em entrevista, Arthur Fonseca Filho, diretor da Abepar e ex-conselheiro nacional de Educação, afirmou que foi consultado informalmente sobre pontos da medida provisória durante a sua elaboração. De acordo com ele, que disse não ter visto a versão final do documento, a proposta gira em torno do “enxugamento” do conteúdo obrigatório do ensino médio e, para tornar isso possível, a ideia é alterar a forma como os vestibulares exigem esse conteúdo em suas provas. Outras pessoas ligadas à área de educação afirmaram que a base da proposta seria essa, mas que ela ainda não era consenso dentro do governo na noite desta quarta.
Procurado, o MEC afirmou que não confirmaria “nenhuma informação que não seja oficial”, e que as informações oficiais só serão divulgadas na tarde desta quinta.
Alteração da LDB
De acordo com Fonseca, a proposta que estava sendo estudada pelo governo segue linha semelhante à que vem sendo discutida desde 2013 por um grupo de especialistas em educação, que começou a estudar alternativas de estruturas curriculares do ensino médio de outros países, como os Estados Unidos. O grupo inclui a atual secretária-executiva do MEC, Maria Helena Guimarães de Castro.
Segundo ele, no decorrer dos anos, a LDB acabou sendo alvo de diversas emendas que acabaram “engessando” o ensino médio por meio da obrigatoriedade de um grande número de disciplinas. Ao mesmo tempo, o currículo acabou se voltando cada vez mais às exigências das universidades na seleção de calouros. “Durante os últimos anos, montes de emendas foram feitas, incluindo diversos componentes curriculares, tornando esses componentes obrigatórios”, explicou ele. “Vai haver um ‘enxugamento’ disso, voltando ao texto original das quatro grandes áreas [ciências humanas, ciências da natureza, linguagens e matemática]. O equivalente a mais ou menos um terço do tempo [carga horária] do ensino médio seria destinado à Base Nacional Comum, que ainda não está aprovada. Com isso, os outros dois terços ficam muito mais livres. E quando digo livres, ninguém está impondo uma mudança qualquer. Eventualmente, se uma escola achar que está ótimo, não precisa [alterar o currículo].”
O “engessamento” do ensino médio também é usado pelo MEC como motivo para defender uma reforma nessa etapa da educação básica. Fonseca explica, porém, que, para conseguir “flexibilizar” o conteúdo do ensino médio, a pasta considera alterar a formulação dos processos seletivos de ingresso no ensino superior, que acabam tendo influência no currículo do ensino médio.
Na LDB, o artigo que define a relação entre os vestibulares e o ensino médio é o 51º. Ele afirma que as instituições de ensino superior, na hora de definir os critérios da seleção dos estudantes, devem levar em conta “os efeitos desses critérios sobre a orientação do ensino médio, articulando-se com os órgãos normativos dos sistemas de ensino”. Segundo Fonseca, da Abepar, a proposta da medida provisória pode passar por uma mudança nesse texto, fazendo com que esses critérios precisem seguir apenas o conteúdo obrigatório definido pela Base Nacional Curricular Comum. Em teoria, isso permitiria ao ensino médio uma liberdade maior em relação ao vestibular – o que deixaria espaço para outros tipos de atividades de caráter opcional paras as escolas e redes.
De acordo com Fonseca, é essa a mudança que permitiria às escolas adotar modelos de ensino médio integrados com o ensino profissionalizante, por exemplo.
Educação acima do Congresso
Callegari, conselheiro do CNE, afirmou que não leu o texto da medida provisória e que defende a “audácia” para “o fracasso do ensino médio”, mas que já se posicionou publicamente contra a aprovação de leis que versem sobre o currículo pedagógico das escolas. Além disso, segundo ele, a LDB já é flexível o suficiente para contemplar as propostas que criticam o “engessamento” das disciplinas. “É evidente que estamos no meio de uma crise crônica. A gente não pode ficar parado no lugar. Temos que dar um passo, mas vamos dar o passo certo”, disse.
“É correto o que vem sendo discutido sobre começar a pensar menos em disciplinas, e mais em áreas do conhecimento. É positivo. Mas uma preocupação que eu tenho é que a resposta a um número excessivo de disciplinas seja uma simplificação rasa, que estreite o currículo apenas em disciplinas meramente utilitárias. Elas são importantes, mas não são suficientes. Tenho essa preocupação de que a ideia de uma flexibilização diminua e amesquinhe a formação do jovem brasileiro, que, antes de mais nada, precisa ser um cidadão do mundo”, explicou o conselheiro. O efeito dessa redução para dar espaço a atividades optativas pode ter resultados contrários aos desejados, alerta ele. “Para o propósito de flexibilizar, eu reduzo o conhecimento. Esse é o problema. No lugar, esse conhecimento pode ser substituído por nada, ou muito pouco. Esse é um risco que existe.”
Ele discordou, também, da ideia de que o ensino médio esteja engessado. “Hoje a legislação vigente – a LDB e as próprias diretrizes curriculares – já asseguram que os sistemas de ensino e as escolas possam flexibilizar, possam fazer várias modelagens curriculares. (…) As únicas coisas que ficam presas por conta da legislação complementar é a obrigatoriedade de filosofia e sociologia [citadas no artigo 36º da lei, inciso IV]. No fundo, são as únicas disciplinas de fato obrigatórias em cada um dos três anos do ensino médio.” Para Callegari, há outras soluções para reformar a estrutura do ensino médio sem a necessidade de alteração da lei. Uma delas é a “educação baseada em projetos” que integra professores de disciplinas diferentes. “É uma maneira de você resolver a excessiva fragmentação disciplinar. Não é eliminando conhecimento nem conteúdo, é fazendo com que esse conhecimento se integre de forma significativa à vida desses alunos.”
A alteração do artigo que define orientações para o vestibular também é desnecessária, segundo ele, agora que o Brasil está próximo de finalizar a elaboração da Base Nacional Curricular. “O carro está na frente dos bois: em vez de o currículo defender as avaliaçoões, são as avaliações que definem o currículo, por falta de um currículo nacional. O que não podemos imaginar é que [os vestibulares] vão ficar proibidos de fazer exigências do processo seletivo de alunos. Não têm que ficar proibidos de nada, os alunos é que têm que ter capacidade de enfrentarem as coisas.”
O conselheiro também se diz contra a definição e alteração de conteúdos curriculares por meio de leis, e defende que essa área da educação seja debatida e decidida pela sociedade e pelos especialistas e trabalhadores da área, como professores e dirigentes, como acontece com a Base. “A medida provisória é um projeto de lei com efeito imediato. Mas ela será convertida em lei. Quando for apreciada [pelos deputadores e senadores], vai certamente receber emendas. O Congresso tem lados, é um jogo de poder. Acho que a educação, sobretudo a organização curricular das escolas, tem que ficar acima desse jogo político-partidário.”
Com informações do G1.