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“Homens morrem na rua, mulheres morrem em casa”

Juruá em Tempo repercute com a delegada Carla Brito o caso de estupro coletivo, que destaca : ‘essa forma de violência está baseada na cultura de superioridade entre os gêneros’.

Entrevista com a delegada Carla Ivane de Brito, titular da DEAM de Cruzeiro do Sul.

Norma Técnica de Padronização das Delegacias da Mulher já estabelece que a gestão desse tipo de delegacia deve ser preferencialmente realizada por uma delegada, profissionalmente qualificadas e sensíveis às questões da violência de gênero

O caso do estupro coletivo de uma adolescente no Rio de Janeiro, suscitou acalorados debates a respeito da realidade da violência contra a mulher em nosso país. O primeiro delegado designado, Alessandro Thiers, foi afastado do caso por condutas que caracterizam a culpabilização da vítima, um erro comum em casos de violência contra mulher.

Foi justamente para se evitar fenômenos como a ‘revitimização’, que foram criadas as delegacias da mulher, que apresenta diferentes níveis de eficiência em cada localidade. Em Cruzeiro do Sul, desde 2012, a delegacia da mulher é ocupada efetivamente por uma mulher: Carla Ivane de Brito. Desde que assumiu a delegacia, Carla deparou-se com a realidade de um tipo de crime que antes era praticamente ‘invisível’. Sem denúncia, violência física e sexual quando cometidos no âmbito doméstico tendem a desaparecer dos índices oficiais, mas não do psicológico das vítimas que levarão as cicatrizes para o resto de suas vidas.

Além da DEAM o enfrentamento á violência contra a mulher, conta também com uma rede de apoio que inclui uma casa de apoio às mulheres vítimas de violência doméstica, com psicólogos, assistentes sociais e profissionais de saúde.

Os poderes públicos e o Estado passaram a reconhecer a necessidade de se tratar a violência cometida contra a mulher envolvendo a perspectiva de gênero

 Juruá em Tempo: Aqui em Cruzeiro do Sul temos uma DEAM. Casos como este seriam diretamente encaminhados à DEAM aqui em CZS?

Sim. A Delegacia Especializada em Cruzeiro do Sul atende às mulheres crianças e adolescentes (estes dois últimos de qualquer sexo) quando vítimas de violência de gênero, doméstica e sexual.

Assim, um caso de violência sexual praticado em face de uma mulher, de qualquer idade, seria encaminhado a Delegacia da Mulher de Cruzeiro do Sul/AC, haja vista o entendimento da necessidade de um atendimento humanizado e especializado, com vistas a evitar uma revitimização. Desta feita faríamos o atendimento e os encaminhamentos necessários, pois nesses casos há a necessidade de atuação de outros órgãos para a realização de exames e adoção de cuidados da saúde física e mental da vítima.

J.T. Qual é a razão e o sentido de uma delegacia especializada em crimes contra a mulher e uma delegada para atender a casos como este?

A Delegacia Especializada em Cruzeiro do Sul atende às mulheres crianças e adolescentes (estes dois últimos de qualquer sexo) quando vítimas de violência de gênero, doméstica e sexual.

Os poderes públicos e o Estado passaram a reconhecer a necessidade de se tratar a violência cometida contra a mulher envolvendo a perspectiva de gênero. Na realidade, já não era tempo de se entender que a violência praticada contra a mulher merece um tratamento que supera àquele dado às questões da vida privada, devendo ser considerada com a visão de questão social, que requer um enfrentamento especializado com ações efetivas de segurança pública, envolvendo ás áreas psicossociais e de saúde, em razão das sequelas provocadas pela violência.  Não podemos considerar apenas as questões criminais, mas deve-se abordar outras áreas fundamentais para a construção de uma verdadeira equidade de gênero.

Quanto à situação da importância de uma delegada para a realização de tal atendimento, a própria Norma Técnica de Padronização das Delegacias da Mulher já estabelece que a gestão desse tipo de delegacia deve ser preferencialmente realizada por uma delegada, profissionalmente qualificadas e sensíveis às questões da violência de gênero, infelizmente tão latente em nossa sociedade, que muitas vezes reage com o sentimento de negação da existência desse fenômeno, que acontece diariamente, muitas vezes das maneira mais sutis. Essa preocupação da padronização se deve à necessidade do acolhimento da vítima ser humanizado, mediante uma escuta ativa e mais sensível, entendendo-se que com uma outra mulher a faria estar mais à vontade, principalmente pelo fato do agressor ser em quase 100% dos casos uma pessoa do sexo masculino.

J.T.  Além da DEAM, contamos mesmo em CZS com uma rede especializada no atendimento à vítima do sexo feminino. Como funciona essa rede de apoio e qual é a razão e a necessidade de uma rede desta natureza?

Em Cruzeiro do Sul/AC há a Rede Reviver – Rede de Cuidados no Enfrentamento à Violência Contra a Mulher no Município de Cruzeiro do Sul/AC, fundamental para a efetividade do atendimento necessário às vítimas de violência. Formada por órgãos públicos e entidades sem fins lucrativos, a rede funciona de forma coesa e em sintonia, proporcionando uma rede de cuidados no entorno das vitimas. Houve o estabelecimento de fluxos como forma a fornecer a assistência necessária diante de cada necessidade, o que vai desde o primeiro atendimento realizado na própria delegacia até os encaminhamentos subsequentes a depender do tipo de violência sofrida. Tal sistematização tem feito com que Cruzeiro do Sul/AC seja referência no combate à violência doméstica no Estado do Acre, pois essa ação conjunta dos órgãos gera a efetividade da previsão legal, empoderando muitas mulheres a romperem o ciclo de violência. Logicamente que sabemos que estamos longe da perfeição, que temos muito o que avançar, mas estamos conseguindo, mediante a adoção de uma postura diferenciada no tratamento dos casos relacionados à violência de gênero o que reflete na redução de mortes de mulheres ao longo dos anos no nosso município. Esse verdadeiro enfrentamento inclui ações educativas nas comunidades, para ambos os sexos, de todas as idades, ressaltando a importância da união de todos no combate a toda e qualquer violência, disseminando a cultura da paz e rompendo paradigmas estabelecidos. Costumo dizer que esse carinho com que tratamos as mulheres cruzeirenses que buscam ajuda na delegacia e na própria Rede Reviver tem preservado vidas e famílias, o que vem se traduzindo na redução das estatísticas negativas e na maior confiabilidade da população quando procura os serviços.

J.T.   Qual é a realidade de crimes contra a mulher em CZS e região? Casos de estupro são comuns? E estupro de vulnerável? E violência doméstica? É possível se caracterizar a ocorrência de um estupro mesmo quando existe uma relação (casamento ou namoro) entre vítima e acusado?

Em que pese todo o enfrentamento realizado, a violência de gênero é uma realidade na nossa região, sendo muito relevante o envolvimento de toda a sociedade no seu combate e na conscientização de que todo e qualquer tipo de violência apenas geram o atraso e prejuízo para toda a sociedade. Como é comum não apenas no nosso estado, mas em todo o Brasil, casos de estupro geralmente são subnotificados, ou seja, não chegam ao conhecimento das autoridades. Há a disponibilidade, no caso das vítimas maiores de idade, de procederem ou não com a representação criminal, sendo tais casos de Ação Penal Pública condicionada à representação da vítima. Assim, no caso de estupro cometido em face de mulheres adultas, o procedimento depende da vontade da mesma para ser instaurado. Isso se deve ao respeito a sua intimidade como sujeito de direitos, mas como consequência teremos a impunidade. Já no caso de estupro cometido contra menores de idade, essa situação já foge dessa disponibilidade e passa a ser de obrigatoriedade a realização de procedimento criminal. No caso específico do estupro de vulnerável, que concerne na prática de qualquer ato libidinoso ou conjunção carnal, contra menores de 14 anos, meninos ou meninas, a violência é presumida, ou seja, mesmo que haja um ‘consentimento’ o legislador entendeu pela necessidade de se resguardar essas vítimas, por considera-los sem o necessário discernimento para dispor acerca da sua vida sexual. Os registros da DEAM envolvendo o estupro de vulnerável são crescentes, mas ao revés, os casos envolvendo o estupro de mulheres adultas são poucos, não em razão da ausência da ocorrência dessa violência no nosso município, mas sim pelo fato de muitas vezes a vítima preferir não denunciar, por vários motivos, inclusive de cunho pessoal e emocional, o que gera a subnotificação.

No que se refere à violência doméstica, pode-se afirmar que a maioria da violência cometida contra as mulheres é praticada por pessoas próximas, inclusive maridos, companheiros, namorados e todos esses também quando na qualidade de “ex”; e por que não ressaltar a violência cometida contra as mulheres, de qualquer idade, pelos próprios familiares? Essa é uma triste realidade, comprovada a nível mundial. Costuma-se afirmar que “homens morrem na rua, as mulheres morrem em casa”, sendo essa frase uma alusão ao grande número da violência de gênero sofrida em nosso país em desfavor de mulheres, praticados por homens de sua convivência. Assim, em razão dessa triste realidade, é possível, como há, inclusive em nosso município, a ocorrência de violência sexual cometida dentro do próprio lar. Cito como exemplo, em caso recente que acompanhei, o fato do esposo ter violentado a mulher na frente dos filhos, o que gerou não apenas o processo criminal com os seus desdobramentos, mas também grande violência psicológica para os filhos, que presenciaram toda essa violência.

J.T.   Uma preocupação dos homens: ser acusado de estupro sem ter cometido. Como identificar quando se trata de uma acusação infundada, como motivo de prejudicar o acusado? Já houveram casos assim aqui? Qual a consequência possível para quem faz a falsa acusação?

Sabe-se que jurisprudencialmente a palavra da vítima, nos casos de violência sexual, crime praticado na maioria das vezes sem testemunhas, tem elevado valor, entretanto essa presunção não é absoluta. Há todo um conjunto de provas a ser analisado, exames, estudos psicológico e social da vítima, bem como a necessidade de oitiva de pessoas que tiveram contato com a mesma, dentre outros elementos, a depender do caso concreto. Temos muito zelo na instrução dos procedimentos criminais, sendo relevante ressaltar que as prisões cautelares (aquelas realizadas no decorrer do processo ou do inquérito) obedecem a requisitos. A imposição de uma medida cautelar de prisão, sendo esta a mais gravosa medida cautelar, pode ocorrer, inclusive nos casos em que o investigado(a) esteja realizando algum tio de coação contra a vítima, para, por exemplo, alterar alguma informação, ou mesmo quando ele(a) busca influenciar alguma testemunha. Muitos casos não são inteiramente compreendidos pela população em razão de não podermos dispor de todos os detalhes do procedimento, haja vista que devem tramitar em segredo de justiça com a finalidade de se proteger a vítima. Muitas vezes a própria família se volta contra a vítima, não havendo a consciência de que esta é a parte que mais sofreu danos e que terá consequências físicas e emocionais para toda uma vida. Há a pressão para que a vítima altere o seu depoimento, razão pela qual há o acompanhamento do caso por Psicólogos e Assistentes Sociais, que fazem o atendimento multidisciplinar e confeccionam o competente Estudo Psicossocial, sendo este documento encaminhado a Delegacia e ao Judiciário. Assim há todo um rito a ser cumprido, justamente para se evitar o cometimento de injustiças. Não desejamos cometer nenhuma injustiça, mas sim de realizar o cumprimento da lei e proteger as verdadeiras vítimas. Daí a necessidade de se esclarecer que as prisões realizadas não apenas passam pela delegacia , mas também possuem a anuência do Ministério Público e do Poder Judiciário.

Em Cruzeiro do Sul/AC já tivemos casos desse tipo que conseguimos elucidar, havendo inclusive a instauração do competente processo contra a falsa vítima e a imposição das consequências legais. Há punição para tal comportamento, seja em razão da prática do delito de “Denunciação Caluniosa” (Art. 339 do Código Penal), cuja pena básica, em abstrato prevê reclusão de até oito anos de prisão, ou em razão  daquele chamado de “Falsa Comunicação de Crime” (Art. 340 do Código Penal), que prevê pena de detenção de até seis meses. Outras condutas delituosas podem ser verificadas em cada caso. Tais esclarecimentos foram possíveis justamente em razão desse cuidado na tramitação dos procedimentos, bem como pela colaboração de testemunhas. A justiça tem trabalhado de maneira exemplar nesses casos, pois não podemos banalizar um crime tão grave e nem movimentar a máquina estatal para investigar mentiras.

J.T.   Por fim. Qual era a realidade da violência contra mulher antes da implantação da rede e qual é a realidade agora?

‘O enfrentamento inclui ações educativas nas comunidades, para ambos os sexos, de todas as idades, ressaltando a importância da união de todos no combate a toda e qualquer violência, disseminando a cultura da paz”

A rede já existia antes de 2012, mas houve um movimento de empoderar os órgãos e estabelecer fluxos, buscando a intimidade com esse fluxo, para um atendimento eficaz e não apenas burocrático.

Desde então nota-se um considerável aumento do número de procedimentos. Da análise de todas as ocorrências, até os dias atuais, constata-se que a violência não aumentou no município de Cruzeiro do Sul/AC, mas sim que havia uma grande demanda reprimida. As mulheres que configuram como requerentes de providências pela Delegacia Especializada de Cruzeiro do Sul/AC há muito sofriam violência doméstica e não tinham a coragem de denunciar. Na medida que notamos o crescimento do número de registro de ocorrências concernentes a violência de gênero, verifica-se que os crimes mais gravosos, como a Tentativa de Feminicídio ou o próprio Feminicídio (assassinato de mulheres motivadas pelo fato de pertencer ao gênero feminino) reduziu no município de maneira considerável.

Em razão das ações realizadas pela DEAM e parceiros, envolvendo-se diretamente com as ações da Rede Reviver, houve um fortalecimento do enfrentamento à violência de gênero, inclusive mediante ações educativas, por meio da realização de palestras na zona urbana e rural, levando informações e esclarecimentos, bem como mediante a atuação rígida para a fiscalização e cumprimento das Medidas Protetivas de Urgência da Maria da Penha requeridas por nossas mulheres na Delegacia e deferidas pelo Poder Judiciário.

Há a atuação ativa nas providências necessárias para coibir o descumprimentos das determinações judiciais, inclusive havendo a representação rápida pela prisão preventiva do agressor reincidente na prática da violência doméstica. Tal postura reflete na diminuição dos delitos mais graves, pois notoriamente a sociedade cruzeirense reconhece que violência doméstica é uma prática reprovável, retrógrada e que não condiz com a realidade de uma sociedade que quer se desenvolver de forma saudável. Ademais, no que concerne ao cumprimento das ordens judiciais para a proteção à mulher, verifica-se que atualmente poucos descumprem as determinações das Medidas Protetivas de Urgência, pois sabem do pulso firme da fiscalização da Delegacia nesses casos.

Os lamentáveis feminicídios que ocorreram nos últimos quatro anos são de número muito abaixo em relação ao período anterior ao ano de 2012, ressaltando que tais mulheres não haviam realizado registro na Delegacia anteriormente para noticiar o que estavam sofrendo.

Deve-se destacar a visão diferenciada e humanizada que devemos agir, haja vista a necessidade de formação de uma consciência coletiva para combatermos qualquer tipo de violência, sendo a violência baseada no gênero uma questão cultural, baseada na cultura de superioridade entre os gêneros, o que apenas nos impede de avançar de viver em uma sociedade justa. Assim, defendemos um novo olhar e dessa forma, com respeito, iremos desconstruir o preconceito até entendermos que a defesa da igualdade de gênero não reflete a luta pelo direito apenas das mulheres, mas sim de toda uma sociedade, pelo direito de todos nós, porque apenas assim poderemos nos desenvolver.

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